'Ninguém liga para PMs mortos', diz americana que teve noivo morto

Clayton foi perseguido por traficantes de comunidade da Zona Norte

FACEBOOK WHATSAPP TWITTER TELEGRAM MESSENGER

Cassia Roth e Clayton Fagner Alves Dias eram um casal improvável. Ela, uma historiadora americana em vias de obter o título de doutorado pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA); ele, um policial militar do Rio de Janeiro, lotado na Unidade de Polícia Pacificadora da favela de Manguinhos e prestes a interromper a breve carreira de PM para se mudar para os Estados Unidos, se casar com a noiva e iniciar uma nova vida.

Faltava pouco mais de um mês para a viagem planejada quando Clayton foi perseguido por traficantes da comunidade da Zona Norte do Rio ao deixar o serviço. De moto a caminho de casa, o PM de 30 anos foi atingido por quase 20 tiros pelas costas na Estrada do Galeão, na Ilha do Governador, por volta das 19h. Chegou a sobreviver a uma cirurgia, mas morreu horas depois do ataque. Era a madrugada de 29 de abril de 2015.

Quase três anos se passaram e o caso de Clayton permanece sem resolução, como mais de 90% dos homicídios que ocorrem no Brasil, e em meio à estatística alarmante de assassinatos de PMs no Rio.

Em meio à grave crise fiscal do Estado, aos cortes de recursos para a segurança pública e à escalada de violência no Rio, 134 PMs foram mortos em 2017 e outros 146 no ano anterior. Em 2015, Clayton foi um dos 91 PMs assassinados no Estado.

Cassia deixou o Brasil após a morte de Clayton, mas vem lutando como pode para que o assassinato seja elucidado. Quatro traficantes foram identificados e há suspeita de que uma banda podre da polícia tenha tido envolvimento.

No processo, a americana diz que vem tendo de lidar com grandes diferenças estruturais e culturais entre os Estados Unidos e o Brasil - tanto no sistema criminal e nas taxas de elucidação de homicídio quanto na forma de a sociedade brasileira ver a polícia.

Sem recursos, sem punição

Nos Brasil, a taxa geral de elucidação de homicídios é estimada em cerca de 8%, com variações de um estado para o outro. Mas não há números confiáveis para acompanhar a situação nacional.

Estudo recente do Instituto Sou da Paz, intitulado "Onde mora a Impunidade?" concluiu que apenas seis estados brasileiros tinham estatísticas consistentes que permitissem estimar uma taxa de esclarecimento.

Um deles é o Rio, onde 11,8% dos homicídios cometidos em 2015 geraram denúncias criminais para que fossem levados a julgamento, segundo o levantamento.

A taxa está muito abaixo da média dos Estados Unidos, por exemplo, que esclarece em torno de 65% dos assassinatos.

Diante do aumento do número de mortes de policiais militares no Rio, a Secretaria de Segurança Pública criou, em 2016, uma divisão especial dentro da Delegacia de Homicídios para investigar as mortes de agentes de segurança de uma forma geral - como policiais militares, civis, federais, bombeiros e agentes penitenciários.

De acordo com o delegado responsável pelo núcleo, Brenno Carnevale, o núcleo conseguiu elucidar 47% dos casos ocorridos na capital entre sua criação, em agosto de 2016, e o fim do ano passado.

O número é bem superior, praticamente o dobro, ao da taxa de elucidação que o Estado tem registrado nos últimos anos, que, segundo a Secretaria de Segurança Pública, chega "a até 27%"

O número não pode ser comparado à taxa de 11,8% citada no estudo do Sou da Paz, pois não se refere aos casos em que uma denúncia criminal foi oferecida, mas sim, segundo Carnevale, aos inquéritos em que se concluiu o que aconteceu e quem foi o autor, o que nem sempre gera provas suficiente para produzir uma denúncia.

Cada pasta, um morto

Há cerca de 100 pastas gordas empilhadas com inquéritos sobre as mesas de Carnevale, situadas em uma sala de luz branca, paredes nuas e mobiliário econômico na Delegacia de Homicídios da Capital, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio.

Cada uma traz um inquérito. "Cada pasta dessas é pelo menos um morto. Alguns processos acumulam mais de um", explica o delegado.

O inquérito sobre a morte de Clayton não está entre as pastas, porque foi anterior à criação do núcleo coordenado por Carnevale. Mas a escassez de recursos de infraestrutura e de pessoal que atravanca o trabalho do delegado é o mesmo que contribui para que ninguém tenha sido acusado pela morte dele, quase três anos após sua execução.

O núcleo de Carnevale tem dez policiais e acumula não só os assassinatos de agentes de segurança, mas também os homicídios decorrentes da oposição a intervenção policial, antes conhecidos como autos de resistência.

Desde agosto de 2016, o delegado recebeu cerca de 500 desses casos, contra cerca de cem homicídios de policiais. Para os autos de resistência, ele não arrisca estimar uma taxa de elucidação - a maioria dos casos está ainda aguardando laudos cadavéricos, depoimentos de policiais e outras pendências.

A falta de recursos significa falta de papel para impressoras, falta de viaturas para a equipe (o que significa depender da boa vontade de testemunhas quando convocadas a prestar depoimento), falta de motivação para policiais, que receberam apenas em dezembro o décimo-terceiro de 2016, e quatro ou cinco computadores para serem usados pelos cerca de 50 agentes que atuam na Delegacia de Homicídios da Capital.

Ele afirma que apurar as mortes de policiais não pode ser mais importante que investigar homicídios de cidadãos comuns, mas ressalta a importância de se punir quem atenta contra agentes de segurança do Estado.

Denúncia de banda podre

Quatro suspeitos foram identificados pela morte de Clayton. Um deles, Luan Lopes da Silva, o Luanzinho, foi encontrado morto em dezembro de 2015. Havia uma recompensa de R$ 20 mil estipulada para sua prisão.

Luanzinho se intitulava "matador de policiais", e logo antes de morrer liderou um ataque à UPP do Jacarezinho que matou outros dois agentes.

Além dos traficantes, o promotor de Justiça Sauvei Lai diz que denúncias anônimas apontaram para o envolvimento de PMs no assassinato de Clayton. A Corregedoria da Polícia Militar foi acionada, mas a denúncia não foi comprovada.

O promotor diz que faltam provas contundentes para embasar uma denúncia contra os suspeitos da execução.

O promotor se reuniu com Cassia Roth e sua advogada para conversar sobre o processo de Clayton e formas de buscar provas mais robustas. Um dos caminhos foi solicitar uma perícia de imagens filmadas em uma câmera que o PM levava durante as operações, para que pudessem ser usadas nas investigações.

As imagens não trouxeram revelações sobre o momento do crime - mas corroboraram a idoneidade do policial em sua atuação na UPP de Manguinhos.

Lai estima que, para cada dez assassinatos no Rio, apenas dois casos resultem em denúncias - e apenas um acabe produzindo de fato uma condenação. Ele diz que faltam recursos de todos os lados.

Pressão familiar conta

A americana Cassia Roth conhece bem as dinâmicas brasileiras. É pesquisadora de história latino-americana e morou no Rio por mais de três anos.

Ciente de que monitorar o andamento das investigações seria importante para que elas fossem adiante, contratou uma advogada para acompanhar o processo de Clayton. Desde a morte do parceiro, vem se engajando como pode para que o caso avance.

Cassia teve contato com investigadores e com o promotor responsável pelo processo, buscou integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), abriu uma página em um site de financiamento coletivo para reunir recursos para ajudar a família de Clayton e escreveu um artigo relacionando o caso à situação de segurança pública do Rio para o blog acadêmico Nursing Clio, do qual é colaboradora.

No texto, contextualiza a morte dele com o histórico de violência nas favelas do Rio, a criação das Unidades de Polícia Pacificadora e a reputação da polícia fluminense de agir de forma violenta e corrupta, e diz que Clayton foi alvejado e executado por ser reconhecido em sua unidade - e pelos traficantes de Manguinhos - como um policial honesto e trabalhador.

Também fala sobre como se sentiu quando uma operação policial para prender os suspeitos da morte do noivo resultou de forma desastrosa, atingindo e matando com uma bala perdida o menino Cristian Soares Andrade, de 13 anos, na favela de Manguinhos.

A morte gerou comoção na comunidade e foi condenada por organizações defensoras de direitos humanos, como a Anistia Internacional.

Em seu artigo, Cassia considerou que as mortes de Clayton e de Cristian eram parte do mesmo espectro, e questionou por que as organizações que tinham saído em defesa do rapaz não tinham se manifestado quando seu parceiro policial foi assassinado.

Desde a morte do parceiro, a historiadora vê se exacerbar a desconfiança com a atividade policial, o que já sentia durante o namoro de três anos.

Era comum ouvir manifestações de surpresa por estar com um policial militar. "As pessoas me questionavam, como se não conseguissem imaginar que uma doutoranda pudesse se apaixonar por um PM", diz ela.

Trajetória interrompida

Cassia chegou ao Brasil em 2011 para fazer a pesquisa para seu doutorado, sobre saúde reprodutiva e direitos de mulheres brasileiras entre 1890 e 1940, após a abolição da escravatura.

Foi apresentada a Clayton por um amigo em comum, em 2012, fazendo a longa trilha que sobe do Parque Lage, no Jardim Botânico, até o Cristo Redentor. Lembra que estava com duas amigas brasileiras, e que ele levou suas mochilas para aliviá-las do peso. A oferta mexeu com seus brios feministas.

Notícia pelo Google

A americana estava em Los Angeles e tinha acabado de embarcar em um avião para ir ver os avós quando soube do assassinato. Estava inquieta com a falta de notícias do parceiro, que não respondera suas últimas mensagens de texto.

Antes da decolagem, por um impulso jogou as palavras no Google: "Policial militar, UPP Manguinhos". E viu a notícia de que um policial lotado naquela unidade havia sido baleado a caminho de casa na Ilha do Governador, onde ela morava com o noivo.

Ao chegar, Cassia foi do aeroporto direto para o enterro de Clayton. No caminho, passou necessariamente pela Estrada do Galeão, onde ele fora baleado. Hoje, ela continua voltando ao Brasil periodicamente para cuidar de burocracias relacionadas ao caso, que incluem um pedido póstumo de reconhecimento de união civil, no qual deu entrada para tentar ajudar a família de Clayton financeiramente.

Depois da grande história de amor que viveu, ela pena toda vez que tem que voltar ao Brasil. "Vamos dizer que já não tenho mais um bom relacionamento com o Rio. É muito difícil para mim estar na cidade."



Participe de nossa comunidade no WhatsApp, clicando nesse link

Entre em nosso canal do Telegram, clique neste link

Baixe nosso app no Android, clique neste link

Baixe nosso app no Iphone, clique neste link


Tópicos
SEÇÕES