MUNDO CIDADÃO
José Osmando de Araújo - Jornalista
O extraordinário escritor e biólogo Mia Couto, poeta e romancista de elevada grandeza, relata no texto “Armadilhas da racionalidade”, uma passagem sobre o militante revolucionário e estadista vietnamita Ho Chi Minh, que ao sair da prisão onde ficara por muito tempo e ser indagado por um jornalista sobre como conseguira escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana, respondeu:
“Eu desvalorizei as paredes.”
Essa lição se converteu em forte ensinamento para o aclamado escritor moçambicano, a partir daí, e serve, também, para que possamos refletir sobre o poder e a influência da mente e do pensamento sobre a nossa vida, as nossas relações, as nossas atitudes, as nossas decisões diante de percalços e armadilhas que nos aparecem com bastante frequência ao longo da caminhada.
Segundo o matemático, escritor, físico, filósofo e teólogo francês Blaise Pascal, o pensamento faz a grandeza do homem. Certamente, a capacidade de pensar é a maior e mais relevante herança adquirida pela espécie humana, tornando-a capaz de ultrapassar seus limites naturais e diferenciar-se das demais espécies colocadas sobre a face da Terra.
Mia Couto (Reprodução)
É por esse componente de racionalidade que o homem foi capaz de superar os determinismos naturais e criar maravilhas científicas e tecnológicas de monumental significado na cura de doenças, do tratamento da dor, do sofrimento corporal, da aproximação entre pessoas de distâncias magistrais, pelos modernos meios de comunicação, do desenvolvimento das artes, da música, da filosofia, da poesia, das ciências em geral.
Mas é esse mesmo fantástico poder de Pensar, resultante de maravilhas na vida do ser humano, igualmente uma fonte inesgotável de contradições, descrenças, antagonismos, frustrações, loucuras, negativismos, numa permanente preparação de armadilhas, das quais muitas vezes nos tornamos incapazes de libertação.
A mesma mente da qual resultam criações maravilhosas e benéficas ao próprio ser humano, cerca-se de medos e preconceitos, alimentando pensamentos tóxicos e atitudes danosas que nos levam a quedas monumentais e danos irreparáveis. É o que denominamos armadilhas mentais, capazes de estabelecer crenças limitantes, busca ilimitada por perfeição, medo de mudanças, de ver tudo por uma única perspectiva, de sentir-se incapaz, de ser inflexível, fazer pré-julgamentos, achar sempre que a culpa é dos outros, ser autoritário e controlador, acreditar que tudo é verdade.
Fiquemos, aqui, com o belo texto de Mia Couto, de seu livro 'E Se Obama Fosse Africano?' :
A Armadilha da Realidade
“Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de «realidade». Falo, é claro, da ideia de realidade que atua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de «razão», outros de «bom-senso». A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: «Eu desvalorizei as paredes.» Essa lição se converteu num lema da minha conduta.
Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. E ensinar a pensar no sentido original da palavra «pensar» que significava «curar» ou «tratar» um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz da poesia na casa do pensamento.
Mia Couto, in 'E Se Obama Fosse Africano?'
E, para encerrar, deixo com o leitor esse poema do grande poeta brasileiro Ferreira Gullar:
No mundo há
muitas armadilhas
No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha
Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
Ferreita Gular (Reprodução)
No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para
acabar com tudo, já
que a vida é louca?
Contudo, olhas o teu filho,
o bichinho que não sabe
que afoito se entranha
à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro
a ver de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e
não vais te matar
e agüentarás até o fim
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos
poderiam alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje
A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e
é preciso quebrá-las.