Meta de Sangue Bom é criticar loucura da busca por ser famoso, diz autora

A crítica ao “crescendo intolerável” da cultura do “famoso por ser famoso”, sem “esforço ou mérito” é a meta dos autores da novela das 19h da Globo.

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"É rindo que se castigam os costumes." A novelista Maria Adelaide Amaral invoca o mote da comédia para salientar que há algo muito sério por trás da trama de "Sangue Bom", que ela escreve junto com Vincent Vilari.

A crítica ao "crescendo intolerável" da cultura do "famoso por ser famoso", sem "esforço ou mérito" é a meta dos autores da novela das 19h da Globo.

O fato de a emissora ser uma peça importante na engrenagem que alça participantes de reality show à celebridade instantânea não afeta, segundo eles, a "liberdade de contar", que é "prerrogativa do autor".

Na entrevista a seguir, concedida na casa de Amaral, em São Paulo, ela fala sobre maus atores, a Comissão da Verdade e diz que não queria estar "na pele de Dilma", que está "na corda bamba" entre a obrigação de apurar os crimes da ditadura e a necessidade de atender composições partidárias.

Como vocês definem a trama de "Sangue Bom"?

Vincent Vilari - É a velha questão do "ter" versus o "ser" tratada por meio de uma história romântica -o amor entre Bento (Marco Pigossi ) e Amora (Sophie Charlotte), em que você tem um rapaz que valoriza as relações afetivas acima de tudo e uma menina que valoriza a segurança material acima de tudo. Esses dois se amam e um tenta trazer o outro para o seu mundo, mostrando as vantagens dele.

Maria Adelaide Amaral - Esse é o cerne da questão. Exatamente por ser uma história entre o "ser" e o "ter", enseja, na parte do "ter", que falemos sobre as celebridades, a fama e essa loucura que virou o foco em torno da evidência, da exposição. Até aí, não tenho nada contra. A questão é quando as pessoas querem ser famosas por ser famosas, sem nenhum mérito, nenhum trabalho.

Tenho muito respeito pelos famosos, quando existe um trabalho, um esforço envolvido, uma disciplina, uma aplicação e um foco. E quando, chegando lá, eles continuam se desenvolvendo. Prefiro trabalhar com jovens atores que invistam em sua carreira, mas não apenas animando baile de debutante. Um jovem ator, para ter o meu respeito, tem que fazer teatro, cinema, tem que se aplicar, andar para a frente.

Você olha para jovens atores e vê a diferença entre gente que resolveu dormir em berço esplêndido, acreditar na sua própria reputação feita que, entretanto, é efêmera.

A gente privilegia os jovens atores que investem em sua carreira. Dá gosto vê-los. Tenho profundo desprezo por jovens atores que acreditam que a fama basta e que eles não precisam fazer mais nada.

Vilari - Acho que isso é resultado de uma falta de educação sentimental, emocional. É uma fome, uma carência! As pessoas querem a fama para ser amadas, queridas, invejadas.

Maria Adelaide - E poderem comprar um Land Rover também.

Vilari - Para serem invejadas por suas posses. Porque, a partir do momento em que você não se preenche, o seu foco torna-se o que você tem. As pessoas precisam se cercar de símbolos de status.

Maria Adelaide - Isso tudo se agudizou nos últimos tempos, a partir da era yuppie, nos anos 1980. Foi num crescendo intolerável. Aí vieram os reality shows, que favorecem a afluência e a notoriedade de pessoas que realmente... Apesar de que, de alguns reality shows saem pessoas como o [deputado] Jean Wyllys [PSOL-RJ].

Vilari - A Grazi, que acho uma ótima atriz.

Maria Adelaide - A Grazi, uma ótima atriz, uma moça esforçada. A própria Sabrina Sato. Ela rala, ela trabalha à beça. A gente tem respeito. Agora, não é porque você trabalhou num reality show que você... Você tem que provar que é mais do que isso.

*O tom de sua crítica dá a entender a senhora encara a fama gratuita como uma afronta pessoal. Por que? *

Maria Adelaide - Não posso dizer que é uma questão geracional, porque o Vincent podia ser meu filho mais novo e também pensa assim. Nós somos muito éticos. Acreditamos em valores fundamentais, como trabalho, honestidade, integridade.

Sou imigrante. Vim de Portugal com 12 anos de idade. Aos 12, já trabalhava numa fábrica de camisas. Foi tudo muito difícil, muito conquistado. Fui escriturária e vendedora numa joalheria. Trabalhei quatro anos no Banco da Lavoura. Trabalhava e estudava à noite. O Vincent vem da zona Norte.

Vilari - [Vim da] Classe média baixa. Cresci no bairro I-Mirim, que é onde mora a personagem da Malu Mader na novela. Meus pais me criaram para seguir meu caminho, para ir à luta. Aos 16, entrei na oficina de roteiristas da TV Globo. Desde então estou batalhando para chegar até aqui.

Vocês escrevem uma crítica ao universo das celebridades numa empresa que alimenta essa indústria. Quais são os limites que a Globo impõe a vocês?

Maria Adelaide - Ninguém impõe limites. Seria difícil. Seria complicado. Evidentemente, é uma novela das sete. A gente pega pelo lado do ridículo, pelo lado cômico. Essa é uma prerrogativa de um criador, de um autor --ter liberdade para contar. Desde a era elisabetana no Globe Theatre o lema era "é rindo que se castigam os costumes". A gente segue essa linha, que é uma linha da comédia. E com toda a liberdade.

A questão fundamental nesse país é a educação. Esse é o nó górdio.

Vilari - Não é uma crítica a um programa específico. É uma crítica à questão da educação.

Maria Adelaide - Quando falamos em educação, não nos referimos a boas maneiras. As pessoas não sabem articular um pensamento. Não têm recursos de linguagem. Leem, mas são analfabetos funcionais. E não é um problema das classes desfavorecidas. Dizem que alguns jovens atores precisam de um coach para entender o texto que vai ser dito.

Isso é uma consequência de uma tragédia nacional, que começa com os militares e prossegue e se desenvolve com toda a indiferença dos poderes constituídos. Culpam-se os militares, que realmente iniciaram o processo da degradação da escola pública. Entretanto, os chamados governos democráticos não fizeram rigorosamente nada.

Qual é sua avaliação sobre o trabalho da Comissão da Verdade?

Maria Adelaide - Tenho profundo respeito pelas pessoas envolvidas, mas acho que, infelizmente, houve uma composição. Quando terminou a ditadura, não se foi fundo nisso. Isso deveria ter começado quando terminou a ditadura. É fácil entender porque não foi assim. É histórico no Brasil -simplesmente abafa-se. Quem deveria ter sido punido não foi. Quem deveria ter sido investigado não foi.

A Lei da Anistia atendia inclusive a quem continuou no poder e vinha da ditadura. Não vou citar nomes, porque hoje tenho mais medo de abrir a boca do que eu tinha em 1989. As coisas ficaram mais complicadas. Isso é um campo minado.

O grande problema é que não se fez o que deveria ter sido feito, o que a Argentina fez, por exemplo. Você tem que pegar aqueles governantes e submetê-los a julgamento. Você tem que apurar a verdade. A gente sabe porque não foi feito. Por causa da Lei da Anistia e porque grande parte das pessoas que ocupavam cargo de mando durante a ditadura continuaram e continuam até hoje. Você vê no poder hoje, ocupando cargos, gente altamente comprometida.

Acho da maior importância que essa comissão vá fundo e revele a verdade, dê nome aos bois. No fundo, estamos falando da mesma coisa, tudo faz parte. Estamos falando de impunidade, corrupção, desse sentimento de desamparo e, por outro lado, de pessoas e grupos que tentam fazer o contrário. Tudo isso temos na novela. Temos pessoas que fazem o diabo e nada acontece com elas. E temos pessoas íntegras, que querem um país melhor, que se importam com os outros.

Vilari - Essa sede pela celebridade está deixando todo mundo mais ensimesmado. O símbolo maior disso é a Barbara Ellen (Giulia Gam), mas isso está pontuado em todas as tramas [da novela], todas elas convergem para a mesma premissa -o que você precisa ter para ser amado? Onde está a verdade?

Em sua opinião, que papel cabe a Dilma no processo brasileiro de busca pela memória, verdade e justiça?

Maria Adelaide - Ela foi torturada. Ela, mais do que ninguém, deve estar muito interessada em que se apure. Mas ela está na corda bamba. Se por um lado ela tem todo o histórico de integridade. Por outro lado, tem as alianças partidárias. Ela sabe que a base do governo é composta por algumas pessoas que participaram da ditadura, que sabiam, que fecharam os olhos, foram omissas ou cúmplices. Ela sabe disso. Mas o que ela vai fazer? Não queria estar na pele dela, de forma nenhuma.

Essa Comissão da Verdade é composta por pessoas muito íntegras, mas elas sabem das dificuldades.

A atual onda de remakes indica que a criatividade para tramas originais de novelas atravessa crise?

Maria Adelaide - Não. Trata-se de apostar no que já deu certo, com a possibilidade de transformar. Fizemos dois remakes muito bem-sucedidos, "Anjo Mau" e "Ti-Ti-Ti". Não tenho nada contra remake.

É melhor estrear uma novela com a antecessora tendo sido um fracasso ou um sucesso?

Maria Adelaide - É sempre uma batalha.

Vilari - Ultimamente não existe mais um público fiel a determinado horário. O público vai ver a novela que interessar. Se a novela anterior foi fracasso ou sucesso, isso não vai determinar a audiência da próxima.

Qual é seu personagem favorito?

Maria Adelaide - Ele adora a Amora.

Vilari - Ela já foi minha filha predileta. Hoje tenho algumas dúvidas. Adoro Barbara Ellen e Damáris (Marisa Orth). Tenho carinho especial pelo triângulo Érico (Armando Babaioff), Renata (Regiane Alves), Verônica (Letícia Sabatella). Adoro o Wilson (Marco Ricca). Eu me vejo naquele mau humor. Os preferidos da Adelaide são Bento, Malu (Fernanda Vasconcellos), Plínio (Herson Capri) e Irene (Deborah Evelyn).

Maria Adelaide - É gente da minha turma.

Vilari - Você vê que a Adelaide é da turma da ética e eu sou da turma da bandalha.

Qual é o grande prazer do autor?

Vilari - Criar.

Maria Adelaide - Primeiro, criar. Segundo, assistir ao próprio trabalho. Quem dizia isso era o Cassiano Gabus Mendes (1929-1993). Ele dizia que é muito nutritivo você assistir ao seu próprio trabalho.

E quando o desempenho do ator derruba o personagem que você criou?

Maria Adelaide - A gente tem vontade de .... Felizmente, os atores que têm derrubado nossos personagens

Vilari (interrompendo) - Aqui, até agora só tem havido alegria.

Maria Adelaide - Ao longo da minha vida profissional, os atores que derrubaram personagens eram coadjuvantes. O prejuízo não era muito grande.

Que tal é fazer São Paulo no Rio de Janeiro?

Maria Adelaide - Só consigo fazer [novela ambientada em] São Paulo. Não sou moradora do Rio de Janeiro. Não sou carioca, não vivo no Rio, não passei minha juventude no Rio, não conheço. Acho bonito, mas como vou falar do subúrbio carioca? Sei falar de São Paulo, porque esta é uma cidade que conheço. Quando você fala da atualidade, é importante falar do que se conhece em profundidade, para não dizer besteira. Isso para mim é primordial.

Mas as filmagens são feitas no Rio. Isso não incomoda?

Eles gravam muito aqui em São Paulo. O Denis é paulista. E tem muito paulista nessa novela. Eu estou satisfeita.



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