Amariles Borba faz história na medicina do Piauí

Com 20 anos à frente da Fundação Municipal de Saúde, Amariles de Souza Borba deixou Floriano em 1943, fez Nutrição e Medicina e é uma das profissionais mais respeitadas no Estado

A médica e nutricionista Amariles de Souza Borba, nascida no dia 10 de maio de 1943, em Floriano, completa 76 anos com uma jovialidade e força para trabalhar inacreditáveis. Após estudar no Rio de Janeiro e viver uma vida repleta de pioneirismos, a médica mostra que a ciência é algo valioso, que precisa ser valorizada ainda mais nos dias de hoje.

Para o sucesso, Amariles recomenda que as pessoas leiam livros de verdade e saiam da internet. “A internet tem que ser o suporte do livro físico”, adianta a profissional, que completa 20 anos como funcionária na Fundação Municipal de Saúde (FMS). A profissional atuou também na Universidade Federal do Piauí, como professora, dando um excelente suporte ao Hospital do Satélite, zona Leste de Teresina.


"Ninguém é insubstituível e cumpri minha missão!

Após uma trajetória repleta de pioneirismos e com muita história para contar, Dra. Amariles, que carrega uma fama de “má”, ou intransigente, mostrou um “lado doce que quase ninguém vê” à reportagem do Jornal Meio Norte. Com uma vida dividida entre Floriano, Teresina e o Rio de Janeiro, ela mostra a competência de décadas dedicada à Medicina.



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““Já arrombei o centro cirúrgico do Gafreé Guinle, no terceiro ano de faculdade. Precisava de uma glicose hipertônica para fazer uma diálise em uma paciente”"
Amarilies Borba

JMN: E o que você pensa para o futuro?

AB: Eu não sei. Ando pensando em um plano b. É muito serviço o trabalho aqui. É 24 horas. Talvez eu aposente. Ninguém é insubstituível e cumpri minha missão. Estou aqui desde as 7h30 e ainda não almocei. Gosto do que faço, amo! Minha fisionomia muda quando falo do que gosto. Já vi muita criança com sarampo, com o ouvido vazando pus. Muita criança com pneumonia grave, com complicações. Vi criança com tétano. Difteria. Nada disso hoje a gente vê para documentar, graças à vacina. Tenho o privilégio de ver como era e como está sendo. Está bem melhor do que hoje.

JMN: E o trabalho com as benzedeiras?

AB: As complicações de diarreia matavam muito. Então fiz uma parceria com as benzedeiras. Orientei que elas mantivessem os rituais, mas que obrigassem as crianças a beber o soro caseiro. Foi uma forma de valorizá-las e, ao mesmo tempo, salvar vidas da região.

JMN: Ao longo da sua vida, você já viveu muitos “causos”. Pode contar alguns?

AB: Já arrombei o centro cirúrgico do Gafreé Guinle, no terceiro ano de faculdade. Precisava de uma glicose hipertônica para fazer uma diálise em uma paciente. Chegou uma mulher que tentou fazer um aborto, que colocou um remédio para dentes no útero. Tive que desparafusar a tranca do cadeado. Mas salvei uma vida, que era o que importava. Ela estava com insuficiência renal, mas saiu de lá urinando. Nessa época não tínhamos o desenvolvimento que havia hoje, em 1967. Nos anos 80 começou o calazar. Todo menino que tinha febre e que vinha da Rua A, B e C, lá em cima, na caixa d’água, no Satélite, chegava essa gente. Eu tinha que dar dinheiro para vir fazer o exame no Hemopi para descobrir a doença. Até que inventei uma coisa. No HDIC, os pais não podiam acompanhar as crianças. Só tinha visita quinta-feira e domingo. Então estudei uma maneira de tratar as crianças em casa, dosando as injeções de forma diferenciada. As crianças tomavam lá no Satélite e ficavam uma hora em observação. No segundo dia dei a dose total, finalizando as 10 injeções. Ao invés de interná-los, eu e a Conceição, uma mulher semi-alfabetizada, atendente de enfermagem. Tínhamos uma planilha com até 10 pessoas. Fiz uma micropolítica que deu certo. Dia de terça e quinta a gente fazia parto domiciliar. Eu pegava os alunos, internos da Universidade, e visitávamos a mulher parida. Levava minhas mãos e olhos. Examinava a criança, via a perda de sangue e orientava como dava o peito, além de ver se as mães não tinham complicações. Fazíamos 10 visitas por dia, subindo e descendo morro no Satélite. Além de atendimento ambulatorial.

JMN: A senhora falou da ciência. Muita gente duvida do poder das vacinas e dizem que não vão vacinar os filhos. O que a senhora acha dessa atitude? É ignorância?

AB: Não é ignorância. É um descrédito. As pessoas estão dando credibilidade a informações inadequadas. No Satélite, nos anos 80, tínhamos crianças com tétano neonatal. Hoje não temos isso porque a gestante é vacinada contra tétano, meu amigo! Como podem dizer que vacina não presta? Você vê criança com sarampo? Difteria? Ainda existe porque as pessoas não fizeram a vacina. Mas quem vê uma criança morrendo de paralisia infantil? Como assim, a vacina não presta? A ciência é necessária. Hoje temos até inteligência artificial.

JMN: A senhora é uma autoridade em dengue. Como vê a doença hoje?

AB: O ciclo da dengue, a cada ano que passa, é como se jogássemos uma pedra em um lago. A cada ano tem mais pessoas que já tiveram dengue pelo menos uma vez. Mas tem que ter dengue quatro vezes. Se circula o dengue 1, mais pessoas tiveram dengue 1. Depende do vírus que circula. Cada pessoa pode ter as quatro dengues, e só assim ficaria imune à doença. Isso até o conhecimento da ciência hoje. A ciência não é estática.

JMN: Qual sua análise desses 20 anos junto à FMS?

AB: A Fundação cresceu até de forma imensurável. Das três equipes de saúde da família evoluímos para 263. Somos uma rede de 93 UBS, 11 hospitais, um hospital de urgência e três UPAs. Então é um crescimento grande para um município do porte de Teresina. Você não encontra isso em outros estados. Nós nos ‘agigantamos’. Vou fazer um comentário sacana: mas se não fosse a saúde de Teresina, o Piauí estava complicado.

JMN: E como veio parar em Teresina?

AB: Em 1975 fui convidada para assumir na Secretaria Estadual de Saúde para coordenar o programa materno-infantil. Fui para UFPI, até que me aposentei como professora de Pediatria na Universidade Federal do Piauí, com o título de professora emérita, e assumi em 1999 a direção do Hospital do Promorar, a convite do Sílvio Mendes, porque a unidade seria reaberta. Ele soube que eu estava aposentada e me chamou para ser diretora clínica. Não fiquei em casa nem um mês. Após um ano e pouco, o Sérgio Ibiapina me chamou para a Fundação Municipal de Saúde, núcleo central. Estou aqui até hoje como comissionada. Nunca pedi para ser nomeada.

JMN: Como foi morar tanto tempo longe de casa?

AB: Os cariocas me acolheram muito bem. Tenho saudade do Rio da época que estudei, hoje está bem diferente. Algo que me encantou muito foi que saí da mata de Floriano, em uma época que não tinha nem energia elétrica, e no Colégio Brasil América, um dos colégios particulares não-católico que tinha boa reputação, a dona Maria de Lourdes, uma senhorinha da escola da cabeça branca, mandou eu dar aulas particulares para estudantes do segundo ano. Fiquei receosa, mas ela cobrou: ‘como tu estás no quarto ano ginasial e não pode dar aula para um menino do segundo? Vai sim!’, então fui. Dei aula de Física e Química até o dia que vim embora, em dezembro de 1972. Fiquei em Floriano até julho de 1975.

JMN: E a residência em Pediatria?

AB: Fiz residência em pediatria no Hospital dos Servidores do Estado, que na época era o top ten da pediatria no Brasil, com o ilustre professor Luiz Torres Barbosa, que havia estudado pós-graduação em Paris. Foi uma pessoa que me marcou muito. Ele implantou a residência de pediatria no Brasil. Ainda na faculdade de Medicina, em 1967, fui fazer o terceiro ano da faculdade e fui aluna de um professor chamado Jacques Houly. Este homem foi o primeiro judeu catedrático da Faculdade de Medicina e Cirurgia. Ele tinha uma concepção de educação inovadora. Eu ficava o dia inteiro no Gafreé Guinle. Ia de manhã e saía de noite. Esse professor colocava todo mundo mundo em frente ao hospital, todos de branco, e mandava ampliar e colocar os nomes. Neste hospital, eu acompanhava os pacientes e tinha que gravar tudo: a história do paciente, o que ele tinha e o resultado de exames. Tudo de cabeça. Uma anamnese perfeita, sem essa coisa de hoje em dia que os colegas fazem. Ele conferia no prontuário. Fui formada sendo cobrada por isso.

JMN: E como foi a trajetória para se tornar médica?

AB: Não troco minha memória por 10 de vocês [aponta para os repórteres]. Cheguei ao Rio de Janeiro no dia 31 de dezembro de 1958. Fiquei até o dia 27 de dezembro de 1972. Morei 14 anos no Rio. Fui para lá fazer o quarto ano ginasial, com bolsa do Ministério da Educação, até que fiz o científico e em 1963 eu fiz vestibular para nutrição. Paguei Conselho a vida inteira. A profissão foi normatizada em um Congresso. Em 1965, passei para a Escola de Medicina e Cirurgia. Então fiz os dois cursos ao mesmo tempo, o terceiro ano de Nutrição e o primeiro de Medicina. Em 1966, terminei Nutrição e, em 1970, fiz Medicina

Jornal Meio Norte: Quando você decidiu ser médica?

Amariles Borba: Escolhi Medicina no dia que o Dr. Sebastião Martins de Araújo Costa, que era o médico de Floriano, morreu. No velório dele eu decidi que ia fazer Medicina [a voz embarga ao lembrar do momento]. Mas por que pediatria? Porque se as crianças forem educadas na área da saúde, serão adultos saudáveis.

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