Carne é forte se for de jumento; frigorífico poderá abater jegues no Brasil

O abate de jumentos é uma das saídas apontadas para reduzir o grande número de animais abandonados nas estradas nordestinas.

jumento | Élcio Braga
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O jegue pode voltar a dar uma força à economia nordestina. O lombo que tanta mercadoria carregou no passado desperta interesse agora pelo sabor e qualidade da carne, muito semelhante à bovina. A GBI Agronegócios e Comércio Ltda apresentou projeto para instalar o primeiro frigorífico com inspeção federal especializado no abate de jumentos no Brasil — com capacidade para até 100 animais por dia. A expectativa é iniciar a venda para a China no ano que vem.

O abate de jumentos é uma das saídas apontadas para reduzir o grande número de animais abandonados nas estradas nordestinas. Segundo dados do IBGE, em 2012, eram 902.176 exemplares no País — 90% deles espalhados pelo Nordeste. A popularização da motocicleta (hoje 38% da venda de veículos na região), nas últimas duas décadas, agravou o problema. O animal, tido no passado como motor da economia, foi colocado de lado.

O grupo GBI, formado por empresários e produtores locais, apresentou a planta do frigorífico e pedido de licença na Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Estado do Rio Grande do Norte.

Jumento busca comida em lixão na beira da estrada em Petrolina, Pernambuco (Foto: Élcio Braga)

— O projeto será voltado ao melhoramento genético e preservação da raça do jumento nordestino. Faremos inseminação artificial, e vários outros procedimentos para melhorar e antecipar o nascimento de mais animais — diz o diretor da GBI, Diego Rego.

O frigorífico aposta na qualidade dos derivados do jumento para vencer tabus.

A carne do jumento é rica em proteínas, menos gordurosa do que as demais consumidas no mercado. O leite é mais próximo do leite materno. A produção de laticínios será um dos carros-chefes do nosso projeto. O queijo do leite de jumenta é uma iguaria — defende o diretor.

A empresa, segundo Diego, está firmando parcerias com prefeituras e órgãos estaduais para a captura dos animais abandonados.

— Além do recolhimento, iremos fazer um trabalho de consciência e educação com a população, para que esses animais não se tornem mais alvo de acidentes. Estamos criando um aplicativo que todos poderão acessar e informar ao entreposto mais próximo onde os animais foram vistos. Assim, realizaremos a captura.

O frigorífico será instalado no Município de Felipe Guerra, na microrregião da Chapada do Apodi, a 351 quilômetros de Natal. Já existem frigoríficos destinados ao abate de equídeos, como cavalos, mulas e até jumentos, no Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

— Pretendemos começar a produção no início de 2018, se tudo correr bem como até agora. Em relação a valores não queria falar, mas é um valor bem considerável. Até porque é um frigorífico para exportação com o SIF — diz o diretor, referindo-se ao Serviço de Inspeção Federal, do Ministério da Agricultura, responsável pela fiscalização em produtos para exportação.

O rigor imposto após a deflagração da Operação Carne Fraca, que interditou 21 frigoríficos no País, não preocupa os produtores. Segundo eles, as normas já eram rígidas e estão sendo obedecidas.

EXIGÊNCIAS

O Serviço de Inspeção, Fiscalização de Insumos e Saúde Animal (Sifisa), da Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Estado do Rio Grande do Norte, enviou a documentação para avaliação à sede do Ministério da Agricultura, em Brasília.

— Fizemos análise e mandamos para Brasília, que devolveu o processo. Parte de projeto tem características que precisam ser corrigidas. O jumento é mais baixo do que o cavalo. Terão de fazer ajustes (na planta). A empresa ficou de resolver as pendências para reapresentar a documentação e obter nova análise e consideração — explica o chefe do Sifisa, Geraldo Marcelino Carneiro Rego.

O projeto prevê o abate de jumentos, produção da carne inteira ou em cortes, com aproveitamento da pele e do couro para subprodutos. Há intenção também do beneficiamento do leite da jumenta, que alcança grande valor.

— Se hoje houvesse produção, cada litro seria comprado por R$ 10. A jumenta em fase boa dá no máximo três litros. Mas o normal é fornecer apenas 1,2 litro por dia — observa Geraldo Marcelino, que também é veterinário.

O chefe do Sifisa explica que o leite é de excelente qualidade, próximo das propriedades do de origem humana. A carne também recebe elogios.

— Só varia um pouco em relação ao odor da carne bovina. Na culinária, passa despercebido e tem a vantagem de possuir pouca gordura. Mas como não temos o hábito de ingerir a carne do jumento, a produção é destinada ao Oriente, sobretudo a China.

O GBI já começou a recolher jumentos abandonados nas estradas e no campo, por enquanto, apenas no Rio Grande do Norte. Os animais vão para uma propriedade, passam por quarentena, são vermifugados e, quando o frigorífico estiver em operação, seguirão inicialmente para currais de pré-abate.

DEFESA DOS ANIMAIS

O licenciamento do frigorífico, porém, promete gerar muitos protestos no Nordeste. O tema pegou fogo de verdade principalmente em 2014, quando o promotor Silvio Brito, então na Comarca de Apodi (RN), organizou um churrasco com carne de jumento para chamar a atenção sobre o abandono dos animais (leia entrevista mais abaixo).

ONGs de defesa protestam contra a ideia de resolver o problema do abandono com o abate. A veterinária Kátia Regina Lopes, coordenadora da Defesa da Natureza e dos Animais (DNA), de Mossoró, no Rio Grande do Norte, diz que o jumento nordestino está em risco de extinção. Um dos critérios que definem se uma espécie está em extinção é se a população caiu pela metade em dez anos.

— Os asininos estão em risco de extinção. De acordo com IBGE, a população está decaindo. Se não fizermos nada e continuar assim, em dez a 20 anos, ocorrerá a extinção. Se houver o início do abate, em dois ou três anos o jumento nordestino estará extinto — afirma ela, doutoranda na Universidade Federal Rural do Semiárido.

Kátia afirma que a produção da carne do jumento é inviável economicamente. Ela lembra que um grupo chinês desistiu do negócio em 2012. A pretensão era produzir 300 toneladas de carne por ano.

— Você tem dois anos para fazer o jumento chegar ao ponto de corte. A fisiologia do corpo dele não acumula gordura. O jumento é magrinho. Rende apenas 150 quilos de carne. Já o boi, em um ano e oito meses, gera 800 quilos de carne — compara.

A veterinária critica ainda a captura dos animais na estrada para o abate.

— Muitos animais estão doentes. Há risco de mais de 12 doenças. A mais crítica de notificação e abate do animal é o mormo, altamente contagiosa. O risco é colocar estes animais para o consumo da população.

Kátia observa que o ponto de maior resistência é a relação do nordestino com o jumento.

— Existe a questão cultural. Historicamente, o homem do Sertão passou fome, comeu calango com xique-xique, mas não matou o jumento. A gente viu muito cabra-macho chorando por seu jegue pela simples ameaça de alguém matá-lo. Ele vê o animal como companheiro de trabalho — observa.

(essé lamenta o abandono de jumentos nas estradas: ‘Morrem de fome e sede’ . (Foto: Élcio Braga)

JEGUE-LATA

A cena surpreendeu o empresário Carlos Ferreira ao se mudar dois anos atrás para a região de São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte: jegues perambularem solitários ou em grupos pelas cidades.

— A gente vê os jegues revirando latões de lixo em busca de comida. Não possuem donos. São vira-latas. São os jegues-latas — define o empresário, que deixou o Rio de Janeiro, para abrir um restaurante na bela Praia de São José, em Touros.

O destino dos jegues, um dos símbolos do Nordeste, mexe com o lavrador Gessé Rodrigues de Souza, de 77 anos. Dono do Sítio Fonseca, em Remanso, em Pernambuco, quase na divisa com a Bahia, ele ainda utiliza o jumento em seu trabalho na lavoura.

— O burro, meu patrão, era para campo, pegar gado, pegar boi, pegar tudo e, se você precisasse, botar na carroça para levar coisas para outro canto. O burro tinha toda a qualidade no trabalho dele. Quando veio essa ‘carraiada’, moto, essas coisas todas, não ligaram mais para os animais. São poucas as pessoas, como eu que ainda usam o jegue. Todo mundo só quer moto e carro.

Gessé lamenta o destino dos animais soltos na estrada.

— Tem seca aí que morre até de sede. Quando dá crise de dois ou três anos sem chuva, os donos têm de estar apegado com o jumento, tirá-lo pra outros cantos, levando a um olho d'água mais lá fora. Os que não têm dono é que se lascam aí.

QUEM É QUEM

Cavalo – Espécie (Equus caballus)

Jumento ou jegue = É outra espécie ( Equus africanus asinus). Asinino, asno.

Jumento + égua = Gera um animal hibrido: o muá, que é estéril. Burro (macho) e mula (fêmea)

Cavalo + jumenta = Bardoto ou bardota. Sem as mesmas qualidades do burro e da mula. É estéril e de menor valor.

Entrevista com Silvio Brito

O promotor Silvio Brito recebeu ataques nas mídias sociais ao marcar churrasco com carne de jumento (Foto: Élcio Braga)

Os jegues se tornaram um problema para o Nordeste?

O jumento era importante para o transporte de cargas, no arado da terra, na tração de carroça e na montaria. O primeiro bague ocorreu com o surgimento dos caminhões. As mercadorias saíram do lombo dos jumentos para as carrocerias. Nas últimas décadas, com a popularização das motos, o jegue perdeu a última finalidade, a de tração e montaria. Virou um entulho, sem valor, e foi sistematicamente abandonado.

O que pode ser feito?

Os jumentos têm vários inimigos travestidos de amigos. Há muita ignorância. Perguntam: Por que não se procura o dono? De 80% a 90 % desses animais já nasceram no abandono. É como quando se vê cachorro na rua, o vira-lata. Já nasceu no abandono. Nunca teve dono. Os poucos que teriam dono se deslocam mais de 150 km atrás de comida. Ninguém conhece a marca que ostentam. Entre os mais de dois mil animais que capturamos mais de 90% não possuíam nenhuma marcação.

Esses animais trazem que tipo de riscos?

Esta época é horrível. Esta semana por pouco não bati. Você anda a 70 km por hora e passa por 40 a 50 animais pela estrada, a RN 117, que atravessa a região.

Defensores dos animais alegam que o abate é uma violência?

Romanceiam demais. Amo os animais. Rodovia não é lugar para se ter animal. A expectativa de vida na estrada é baixíssima. Há incremento de moscas nesta época de chuva. Moscas varejeiras pousam nas feridas do animal. Dá bicheira. Você vê o animal ser comido vivo.

Alegam também que o jumento tem uma relação afetiva com o nordestino.

O ambientalista diz que o jumento é nosso irmão. Mas o animal não tem valor econômico. Tudo demanda dinheiro. Felizmente, pessoas que estavam envolvidas comigo, se juntaram a empresários e estão querendo produzir jumentos para vender a carne, o couro e o leite, com toda a preocupação ambiental. Tem de viabilizar uma cadeia produtiva.

Qual é a solução?

Há dois anos me envolvo com este trabalho. Quando começamos a recolher 500 animais nos deparamos com um problema: O que fazer com estes animais? Eles precisam de espaço, água, comida. Você assume a responsabilidade. Surgiu a inquietação. Vamos fazer o que? Chegou a ideia de inserir o jumento na cadeia alimentar. A carne é extraordinária.



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