Ignacio de Loyola Brandão escreveu no Estado de São Paulo

A admiração cresceria a cada passo, revelando-me a diversidade brasileira

Veja video no final da crônica | Divulgação
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A cada passo, o espanto. Por fora me parecia uma escola normal, o muro alto vedando a visão. Transposto o portão, o inesperado, a absoluta limpeza. Logo, outro assombro, não há uma só grade. Antes de ser apresentado à diretora, fui ao banheiro. Imaculado. Não estava entendendo. Não é uma escola pública em um dos bairros mais afastados da capital do Piauí? Um dos bairros mais violentos, abandonados? Não me disseram que é uma escola para alunos carentes, aqueles a quem a vida pouco dá, ao contrário, com o correr dos anos vai tirando? Nenhuma grade para proteger do mundo exterior, nenhum grafite nas paredes e nem uma janela quebrada.

A admiração cresceria a cada passo, revelando-me a diversidade brasileira, nossas incoerências e contradições. O absurdo tornado realidade, felizmente. Percorri classes, recebido por alunos sorridentes, de alto astral, orgulhosos, que me cantaram canções alegres. Já fui a muita escola de periferia em São Paulo e pelo Brasil. Alunos tristes, sem auto estima, professores desiludidos, agredidos, desrespeitados, humilhados. Instalações precárias, banheiros sujos, falta de carteiras, de material, paredes repletas de inscrições ininteligíveis, grades para evitar roubos e depredações, cozinhas precárias, merendas destinadas a fomentar a subnutrição.

Retrato do ensino brasileiro. Mas aqui, nesta escola chamada Casa Meio Norte, não! Tudo é diferente, e como! Por que decidi vir, abandonando outros compromissos? Racém-chegado de Berlim, ainda no aeroporto, me disseram: nessa escola, cada aluno lê entre 20 e 30 livros por mês. Vamos lá, eu disse!

Não acreditei, até chegar e descobrir que é verdade. Na Casa Meio Norte, na Cidade Leste, as crianças têm paixão por livros e pela escrita. Cada sala de aula tem uma sacola com 40 livros. As crianças descobriram que, por meio da literatura, podem escapar da dura realidade em que estão envolvidos e à qual fatalmente seriam levados. Um futuro não futuro, tornado futuro pela leitura e pela escrita. Cidade Leste vive sob o domínio da violência, há todo tipo de foras da lei, do traficante ao ladrão, ao ladrãozinho, ao futuro ladrão. Esses meninos da Casa estariam destinados a se tornarem ?mulas?, levando drogas, ou estariam nas ruas pedindo esmolas, roubando.

Estariam soltos, abandonados, fadados a morte prematura. Há pais aqui que são do tráfico, da delinqüência. Há quem não conheça o pai, há quem não saiba quem é sua mãe. Todavia, quando entramos e vemos aqueles rostos, sabemos, tudo indica, estão salvos. Nessa Casa comem quatro refeições por dia, quando o normal, fora dessas paredes, seria não comerem nenhuma. Para ajudar a manter a Casa, o Jornal Meio Norte, do Grupo de Comunicação Meio Norte, um dos principais de Teresina, entra com apoio, patrocina uma série de coisas, alicerça realizações. Responsabilidade social pode gerar mudanças.

Quando entrei, uma menina de 10 anos, Mariana Garcês, disse que gostaria de ler um poema para mim.

Se você do vicio consegue sair fecha a porta para eu não entrar. Se você na escola conseguir entrar deixe a porta aberta para eu passar. Contei minha história, a do Menino que Vendia Palavras, meu livro infantil. Disse que também fui pobre, lia muito, escrevia. Isso nos igualou. Em parte, claro. A cada passo, um aluno queria me mostrar um texto. Numa das classes, Anderson, tido como dos mais tímidos da escola, teve coragem, veio à frente, me disse também um poema. Não conseguiu terminar, chorou de emoção. Todos queriam falar do livro que leram, e foram tantos. Vi a relação dos titulos retirados e devolvidos a cada dia. A turma ? são 680 alunos ? lê mais do que muito universitário da USP ou da PUC, do que muito menino de classe média e média alta do ensino privado.

Eles gostam de ouvir e de contar histórias. Muitos não sabem se verão o pai no dia seguinte, habituados ao cotidiano de violência que permeia lá fora. Muitos desses pais são aqueles que garantem a ?segurança? da Casa Meio Norte. Certo dia, uma gangue de outro bairro roubou equipamentos. Dois dias depois os equipamentos ?estavam de volta?, foram resgatados. Há um conceito que corre: Não mexa com a escola! Muitas vezes, na reunião de pais e mestres, professores deparam com sujeitos vestidos corretamente, camisas de mangas compridas para esconder tatuagens ou cicatrizes, participando, dando opinião, perguntando. Eles não querem que os filhos sejam como eles. E os filhos não querem ser. Essa escola de ensino aplicado, que existe há dez anos, está realizando aquilo que todos desejam, e responde a pergunta que ouvimos pelo Brasil inteiro: como fazer a criança ler? Como tirá-las das ruas, dar identidade, ensinar cidadania? Aquela meninada sabe mais de cidadania do que milhares de parlamentares federais, estaduais, municipais, envolvidos em maracutaias sem fim.

Seminários, convenções, simpósios, debates de ?alto nível?, comissões de governo. Nada tem adiantado ao longo de décadas. Basta vir a Teresina e conversar com os 28 professores da Casa, um grupo de abnegados apaixonados. Os olhos daqueles professores são iluminados. Aqui entra o paradoxo, a estranha maneira pela qual tudo funciona no Brasil e que nenhum ministro, secretário, educador, técnico, profissional consegue alcançar, entender. Há um Brasil aparente e um Brasil oculto com pessoas admiráveis sobre as quais não cai um foco de luz e elas não precisam, são alimentadas por sonhos e ideais. É o Brasil que caminha.



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