Crise faz três gerações da mesma família a pedir nas ruas de São Paulo

Na frente da Rodoviária do Tietê, a maior da América Latina, dezenas de pessoas - incluindo bebês - sobrevivem com o que conseguem pedir.

Famílias voltam a morar nas ruas | Reprodução BBC Brasil
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A crise econômica tem aumentado o número de pessoas morando nas ruas do Brasil. Em São Paulo, por exemplo, sob ameaça de temporal, Caroline Silveira, andava entre os carros parados em um farol da avenida Cruzeiro do Sul, zona norte, pedindo ajuda. Na barraca da calçada, entre trovões e buzinas, dormia uma de suas filhas, uma garota de 1 ano e 9 meses.

Caroline pede dinheiro, emprego, comida, leite, fraldas, brinquedos, roupas, ou qualquer auxílio que possa amenizar um pouco a dureza que é viver nas ruas de São Paulo. Como ela, ali na frente da Rodoviária do Tietê, a maior da América Latina, dezenas de pessoas - incluindo bebês - sobrevivem com o que conseguem pedir.

No caso da família de Caroline, são três gerações de mulheres sob a mesma barraca embaixo do viaduto por onde passa o metrô: ela, suas duas filhas pequenas, e sua mãe, Sulamita Baptista, 42, grávida de oito meses. "Para não fazer uma coisa errada, tirar dos outros, a gente prefere manguear", diz, quando o farol ficou verde.

As quatro mulheres foram para a rua há pouco mais de um ano, depois que Caroline e a mãe perderam seus empregos - os pais das crianças também estão parados, e dependem de bicos esporádicos. Sem dinheiro para o aluguel, a família foi despejada da casa onde vivia. Em Santana, a locação de um apartamento em um conjunto habitacional fica próximo de R$ 1 mil.

Caroline era faxineira em eventos na zona norte, principalmente no centro de convenções do Anhembi, mas a pandemia interrompeu os trabalhos. Já Sulamita, que migrou do Recife há 12 anos, produzia adereços e fantasias em uma escola de samba, mas ficou sem serviço quando o Carnaval foi cancelado.

"A gente vive de pegar marmita e pedir no farol. Todo dia um pessoal vem aqui e doa comida", explica Sulamita, que ajuda a cuidar das netas pequenas e espera o parto de seu terceiro filho para 8 de fevereiro. 

Ela tem feito acompanhamento médico em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) da região e, quando o bebê nascer, pretende morar por uns tempos na casa de um parente que prometeu ajuda. A filha e as netas, porém, devem continuar na rua.

Caroline pede ajuda nas ruas de São Paulo

Ajuda do Governo

A família recebe R$ 400 do Auxílio Brasil, programa do governo Jair Bolsonaro (PL) que substituiu o Bolsa Família, mas o valor não dá conta de sanar as necessidades do cotidiano, ainda mais com duas crianças pequenas e uma mulher grávida. "Onde a gente consegue morar com R$ 400 em São Paulo? A gente gasta quase tudo em leite e fraldas. Um quilo de carne está R$ 40. O gás custa R$ 100", diz Sulamita.

A situação da família retrata a crise econômica sob o governo Bolsonaro e agravada pela pandemia: aumento de desemprego e da inflação, milhares de despejos e crescimento da fome. O país soma 12,9 milhões de desempregados, e o preço dos alimentos acumula alta de mais de 14,66% nos últimos 12 meses, segundo o IBGE.

Embora existam decisões judiciais impedindo a remoção forçada de famílias na pandemia, os despejos também cresceram nos dois últimos anos. De agosto de 2020 até novembro do ano passado, 23,5 mil famílias foram despejadas no Brasil, segundo um levantamento da campanha Despejo Zero, lançada por organizações e movimentos sociais. O país somava 123,2 mil famílias ameaçadas de retirada forçada de seus domicílios em outubro do ano passado, um crescimento de 32% em relação ao levantamento anterior, de agosto.

"Se você não tem endereço fixo, dificilmente alguém te dá um emprego", diz Caroline, que passa parte do dia "mangueando" para conseguir alimentar as filhas. "Meu sonho mesmo é ter uma casa, um lugar para ficar. Deixar as meninas na creche e procurar um emprego..."

Suas duas filhas foram inscritas em uma creche da região há poucas semanas, diz, mas a família ainda aguarda ser chamada pela prefeitura. Já sua mãe, Sulamita, sonha com um futuro melhor para o bebê que vai nascer em poucos dias. "Minhas netas já se acostumaram à rua. Não vai acontecer com meu filho também. Só quero um lugar para ficar, ninguém merece a rua", diz.

Crise tem levado milhares de pessoas a viverem nas ruas

'A rua é sem futuro'

Nas proximidades da rodoviária do Tietê, a reportagem encontrou dezenas de pessoas em situação parecida: despejadas, sem emprego e renda fixa, vivem em barracas em canteiros e praças. Pararam ali por causa do fluxo intenso de pessoas que entram e saem da rodoviária, oportunidade de conseguir mais doações.

Boa parte fica embaixo do elevado por onde passa a linha 3-azul do metrô, em frente à entrada principal do terminal rodoviário. As grandes pilastras desse viaduto, pintadas com grafites, já fizeram parte de um projeto do poder público e de artistas de transformar a área em uma espécie de museu da arte de rua paulistana. Porém, hoje as obras estão sujas e degradadas, além do mato e lixo acumulado. Quem vive por ali precisa conviver com grandes goteiras e poças d'água que se formam quando chove forte.

Uma dessas famílias é a de Tatiane dos Santos, 37, e Marcio Freire, 42. O casal tem um filho de um ano e oito meses, que vive com eles em uma pequena barraca.

Eles são de Francisco Morato, cidade da Grande São Paulo. Lá, pagavam R$ 600 de aluguel até serem despejados. Sem serviço, migraram para as ruas da zona norte há quatro meses.

"Em Francisco Morato a gente podia fome, sem dinheiro. Lá quase não tem assistência, ninguém ajuda. Aqui sempre tem alguém pra doar uma marmita, um alimento", diz Tatiane, que já foi cozinheira e vendedora. Com o filho pequeno e sem endereço fixo, está desempregada há quase dois anos. Recebe R$ 400 do Auxílio Brasil, mas o valor é consumido com as despesas básicas do filho, como fraudas e leite.

Seu companheiro, Marcio, não consegue serviço fixo como vigilante há mais de um ano - de vez em quando consegue pequenos bicos nas ruas. "A rua é sem futuro, mas é o que tem pra gente. Sempre ouvi que as pessoas que moravam na rua eram 'vagabundas', drogados. Hoje são famílias inteiras, crianças, bebês", diz ele.

O casal afirma ter dificuldade para conseguir uma vaga em centros de acolhida da prefeitura. "Nunca tem vaga pra mulheres e crianças", diz Tatiane.

A poucos metros dali, na avenida Zaki Narchi, há um abrigo municipal, mas o espaço só recebe homens. A reportagem tentou visitar o local na tarde do dia 13/1, mas funcionários de uma empresa terceirizada que administra o ponto impediram a entrada, alegando ser necessária autorização prévia da prefeitura.



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