Vinicius de Moraes completa 100 anos e dupla com João Gilberto está entre músicas inéditas

Um lote de músicas inéditas mostra que o compositor carioca foi parceiro até de João Gilberto

Vinícius em show no Rio de Janeiro em 1967 | ACERVO
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Vinícius de Moraes dizia que tinha vocação para vagabundo. É uma definição injusta. Vinícius foi um trabalhador incessante que, embora cultivando a fama de boêmio e namorador, deixou uma enorme produção intelectual. Escreveu peças de teatro, roteiros de filme, crônicas e críticas para jornal, lançou 30 livros de poesia e pelo menos 40 discos, e um legado de mais de 300 canções de sua autoria. Vinícius fazia várias versões de seus textos, perseguia sempre a melhor forma e deixou um respeitável arquivo de rascunhos e originais. Nas últimas semanas, a reportagem vasculhou seu acervo pessoal e localizou dez letras inéditas de canções. Elas vêm à luz nesta edição, publicada na semana em que Vinícius faria 100 anos. São músicas em parceria com Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell e Toquinho. Também surge do baú a revelação de uma parceria surpreendente: Vinícius com João Gilberto. É um encontro raro, até hoje desconhecido, de dois expoentes da Bossa Nova.

As letras estavam no arquivo de Vinícius na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Depois de compor ?Goste de mim?, Vinícius e Carlos Lyra consideraram que a música não cabia em seus repertórios. ?Saudade de lá?, também dos dois, foi escrita para a peça Pobre menina rica, de 1959. Acabou engavetada, porque o espetáculo ficou longo demais. Ela não estava no lote da Fundação e foi apresentada por Lyra em entrevista. Apesar de nunca ter sido gravada, seus versos são citados no Livro de letras, de Vinícius. A pedido, Carlos Lyra gravou ambas. Elas podem ser ouvidas nas versões digitais de ÉPOCA. Outra canção, ?Desafio?, em parceria com Baden Powell, não veio à luz por desavença entre os parceiros. O filho de Baden, Marcel Powell, também gravou a música.

As músicas encontradas trazem versos à altura do talento e da criatividade de Vinícius. É o caso de versos melodiosos, como o samba vai sair com suas cores, seus enredos, seus amores, seus pastores mais gentis (de ?Desafio?). Ou do jogo de palavras terra seca mais danada, não dá nada, dá saudade (de ?Saudade de lá?). Em tempos de Anitta e seus funks, não é pouca coisa. O resgate das músicas pode gerar, quem sabe, um álbum de inéditas no centenário de Vinícius. Carlos Lyra e Francis Hime, que tomaram conhecimento do material por meio da reportagem, pretendem musicar as letras de ?Amando demais? e ?Tema do Francis?, cuja melodia se perdeu.

Durante muito tempo, Vinícius teve preconceito com a música popular. Na juventude, era um poeta de feição mística e puritana ? o exato oposto de sua produção posterior. Voltou-se para a música em 1956, quando foi apresentado ao músico Antônio Carlos Jobim, para compor as canções da peça Orfeu da Conceição. Como definiu o escritor Ruy Castro, Vinícius viveu ao contrário ? de jovem sério e conservador se transformou num velho libertário, que agia quase como criança. Nos anos 1970, vivia como um hippie em Salvador. Os fãs do poeta tradicional não gostaram de sua nova faceta. ?O preconceito vigorou durante muito tempo nos meios acadêmicos e em certo ambiente literário. Mas isso não impediu que sua obra continuasse sendo lida e amada por um público bastante extenso?, diz Eucanaã Ferraz, curador das edições dos livros de Vinícius pela editora Companhia das Letras. Vinícius não compunha sozinho. A partir de lembranças da convivência com os cinco parceiros das músicas inéditas ? Tom, Carlos Lyra, João Gilberto, Toquinho e Baden ?, é possível rastrear seu percurso de vida e entender como ele foi capaz de criar uma obra tão vigorosa e singular.

AS ?GILBERTADAS? DE JOÃO

Como intérprete, João Gilberto foi uma espécie de guia da Bossa Nova. ?Ele criou um padrão de interpretação que influenciou as composições da época. João não cantava nada que tivesse exagero, seja na letra ou na melodia. Com isso, trouxe o esquadro para os compositores?, diz Luiz Tatit, músico e professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele próprio, João Gilberto, não foi um grande compositor. Suas músicas não passam de uma dezena, que fez sozinho ou em parceria com o pianista João Donato. ?João ficava horas desenvolvendo temas no violão e estudando as harmonizações possíveis. Preferia fazer isso a terminar uma música inteira?, diz sua ex-mulher, a cantora Miúcha. Por isso, é surpreendente a revelação de duas canções inéditas feitas em parceria com Vinícius. As letras estavam datilografadas e continham algumas rasuras, com a caligrafia de Vinícius. Falam de amor, flor e dor, como era comum nos primórdios da Bossa Nova.Como não havia partitura, não é possível avaliar a qualidade das canções. João Gilberto, que vive recluso em seu apartamento no Rio, confirmou a parceria, mas não deu detalhes.

A dupla com Vinícius é ainda mais surpreendente pela distância das duas personalidades. João Gilberto, pouco afeito ao convívio, é o oposto de Vinícius, sujeito gregário que escolhia suas parcerias pela amizade. Os dois chegaram até a se estranhar na década de 1960. Um primeiro atrito aconteceu por causa de amortecedores de automóvel. Em janeiro de 1963, Vinícius escreveu a Tom: ?João passou por aqui e fez uma de suas gilbertadas: não me telefonou nem procurou. Não sei se por que esqueceu (ou gastou o dinheiro) (...) que eu lhe mandara para me conseguir dois amortecedores dianteiros para o Mercedes?. Em dezembro daquele ano, Vinícius tomou um bolo de João Gilberto na Itália. Ele estava de passagem por Roma, João Gilberto estava em Paris. Conversaram ao telefone. João Gilberto disse que precisava muito encontrá-lo. Vinícius passou uma semana num hotel com diárias caras para esperá-lo. João Gilberto não apareceu.

Na correspondência de Vinícius, não há uma única carta de João Gilberto. Também não existe informação sobre quando os dois se encontraram para compor as duas músicas. Só João Gilberto poderá um dia revelar esse mistério.

SEM PARTITURA

Quando encontrou Vinícius para compor as canções de Orfeu da Conceição, em 1956, Tom era um pianista desconhecido da noite carioca, com 29 anos de idade. Estava mais preocupado em correr atrás do dinheiro para o aluguel do que com qualquer possibilidade de fama como compositor. Vinícius, poeta renomado, precisava de alguém para compor com ele as canções do espetáculo, embora não tivesse quase nenhuma experiência musical. A dupla demorou a engrenar. Quando isso aconteceu, a primeira canção que fizeram em conjunto foi ?Se todos fossem iguais a você?, sucesso de público e crítica.

Enquanto durou, a dupla mais famosa da música brasileira produziu perto de 60 canções. Como tudo em que puseram a mão virou ouro, não ficou praticamente nada na gaveta. As duas letras encontradas agora são uma surpresa até para seus herdeiros. ?Nunca ouvi falar delas. São coisas bonitas, mas só os autores poderiam dizer o que aconteceu?, diz Paulo Jobim, filho de Tom. Será difícil reconstituir a melodia das músicas ?Na onda? e ?Meu menino?. Na parceria, Vinícius escrevia a letra para não esquecer, enquanto Tom guardava a melodia na cabeça. ?Ele não gostava de gravar e tinha preguiça de escrever a partitura na hora?, diz Teresa, primeira mulher de Tom. Melodias que não foram lançadas, e de que ninguém se lembra, como as que acompanhavam as letras agora encontradas, se perderam. A letra de ?Menininho triste? tem uma temática infantil. ?Na onda? parece algo mais no espírito da Bossa Nova. Não há registro de quando foram compostas. ?Eles gostavam de mostrar as músicas assim que ficavam prontas, mas não me lembro de ouvir nenhuma delas?, diz Teresa.

CÚMPLICE DE SEQUESTRO

Depois de Tom, Vinícius foi atrás de outras experiências musicais. Trabalhou sempre com parceiros mais jovens. ?Éramos como esposas num harém. Eu, o Baden, o Tom, compúnhamos sempre com ele, e Vinícius tinha um ciúme danado quando fazíamos algo com outro letrista?, diz Carlos Lyra, de 77 anos. Ele tinha 25 anos quando tomou coragem de ligar para Vinícius e propor uma parceria. Vinícius o convidou imediatamente para ir a sua casa. Lyra foi até lá e deixou registradas cerca de dez canções num velho gravador. Vinícius prometeu colocar letra mais tarde. Uma semana depois, estavam prontos clássicos como ?Coisa mais linda? e ?Minha namorada?.

Vinícius e Carlos Lyra se tornaram amigos e confidentes. Partiu do jovem parceiro a ideia de raptar uma moça por quem Vinícius estava enamorado. Em meados dos anos 1960, Vinícius tinha 50 anos e estava casado. Conheceu Nelita, que seria sua quinta mulher, quando ela tinha 18 anos e namorado firme. Começaram a se encontrar em sigilo. O caso logo foi descoberto. Diante da rejeição da família da moça, Vinícius topou a ideia de Carlos Lyra ? que falara de brincadeira ? e fugiu com Nelita para Paris. O caso rendeu uma reclamação formal no Itamaraty, pois Vinícius era diplomata.

A parceria com Carlos Lyra deixou pelo menos duas músicas inéditas. Uma delas, ?Goste de mim?, tem ritmo de Bossa Nova e foi criada naquele início da década de 1960. Nenhum dos dois parceiros gravou. ?Há música que não tem carreira. A gente espera que alguém se interesse, que alguém grave, mas não acontece?, diz Lyra. A segunda canção é um xote com título ?Saudade que dá?, composta para a peça musical Pobre menina rica, escrita em 1962. Ela deveria ser cantada pelo personagem Pau de Arara, um mendigo nordestino que, para matar a fome, comia até giletes. O personagem ficou famoso na época, interpretado pelo comediante Ary Toledo. A partir dele, Toledo se projetou nacionalmente. ?Saudade que dá? não entrou na peça nem no disco, e os músicos não fizeram um álbum seguinte para encaixá-la.

CASAMENTO SEM SEXO

Na parceria com Baden, que aconteceu no mesmo período em que compunha com Carlos Lyra, Vinícius teve uma experiência radicalmente diferente. Ele se afastou da Bossa Nova para produzir músicas com influência dos ritmos africanos, do candomblé e da capoeira, os afro-sambas. São exemplos dessa produção canções como ?Berimbau? e ?Canto de Ossanha?.

Baden era um jovem que tocava violão virtuosisticamente e foi praticamente adotado por Vinícius. Deixou a casa dos pais no subúrbio e chegou a morar três meses no apartamento de Vinícius em Laranjeiras, Zona Sul carioca, onde varavam as madrugadas compondo. Juntos, os dois escreveram cerca de 40 canções. ?Às vezes, eles brigavam, ficavam com ciúme, era como um casamento sem sexo?, diz Silvia Powell, viúva de Baden.

As letras que ficaram inéditas foram compostas quando a relação começou a esgarçar. Baden fez a melodia para a canção ?Desafio? e deu para Vinícius colocar a letra. Ele escreveu alguns versos, mas Baden não gostou. Depois fez uma nova tentativa, também sem a aprovação do outro. A terceira versão foi a última. Ela permaneceu inédita porque os parceiros continuaram não se acertando. Anos depois, Baden deu a melodia ao compositor Paulo César Pinheiro, que fez uma nova letra. A música foi gravada com o título ?Diálogo?. Ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção de 1972.

A CANÇÃO CENSURADA

A última parceria de Vinícius, com o músico Toquinho, foi a que rendeu uma produção mais extensa. A dupla compôs 85 músicas, gravou cerca de 30 discos e fez mais de 1.000 shows no Brasil e no exterior. Foi a fase mais popular de Vinícius. ?Muita gente não perdoava esse sucesso. A intelligentsia já tinha pendurado a chuteira do Vinícius, e fui criticado por tirar ele do pedestal?, diz Toquinho, hoje com 67 anos.

A música inédita da dupla encontrada é uma versão alternativa para ?Paiol de pólvora?, uma das únicas canções da dupla, que foi censurada. Ela seria o tema de abertura da novela O Bem-Amado, de Dias Gomes, a primeira em cores da televisão brasileira.

Toquinho e Vinícius fizeram todas as canções da trilha. A letra de ?Paiol de pólvora? sugeria que o Brasil era um campo minado prestes a ir pelos ares. O censor que avaliou a música não entendeu a mensagem e deixou passar. Quando os discos da trilha sonora já estavam prontos, o diretor do Departamento de Censura percebeu a bobagem e vetou a canção. Depois de longa negociação, a venda dos discos foi liberada, mas ficou proibida a execução pública da música. Na versão alternativa, Vinícius manteve a letra praticamente igual. Apenas substituiu ?paiol de pólvora? por ?central de autômatos?. ?Pode ser que ele tenha feito isso como uma opção, mas nunca me mostrou?, diz Toquinho. Não foi uma mudança muito inspirada. A canção é uma exceção entre as inéditas de Vinícius, que merecem ser resgatadas e regravadas. Elas são dignas do talento de quem achava que a vida era a ?arte do encontro? ? e com isso traduziu, com fidelidade e talento, o espírito, o sentimento e a vocação social tipicamente brasileiros.



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