Fernanda Paz: “A minha vida é involuntariamente marcada pela arte”

“O conto tem, sim, suas vantagens nesse contexto e dialoga com a fluidez dos acontecimentos”.

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Fernanda Paz | Divulgação
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A rapidez tecnológica vem afastando as novas gerações do livro. A afirmação é da professora na Prefeitura Municipal de Teresina, Fernanda Paz, formada em Artes Visuais e especialista em educação infantil pela Universidade Federal do Piauí. 

Fernanda Paz atuou em peças teatrais e curtas metragens em Teresina. Publicou “O buraco e outras histórias” pela Editora Multifoco do Rio de Janeiro e “Olhos de Vidro” pela Editora Quimera do Piauí. Participou de antologias poéticas e coletâneas de contos e poesia. Recentemente seus contos foram publicados na revista Luso-Brasileira Subversa, na Revestres, Acrobata e na Diversos Afins. 

Sem a literatura, falou Bukowski, a vida é um inferno. Pensa assim também? 

Fernanda Paz: Impossível afirmar que a vida seria igual sem acesso ao ilimitado que é a literatura e a arte em geral. A escrita nos permite convertemos esse inferno em afetos, ou até criarmos infernos maiores para sublimar os nossos. O encontro com a literatura desde sempre me levou a universos inimagináveis, não falo só escrevendo, o consumo de arte me modifica também.

Que livros despertaram em você o desejo de ser escritora?

FP: Inicialmente, os clássicos juvenis da coleção Vaga-Lume que me faziam viajar em aventuras, também me impulsionaram a criá-las e guardá-las em velhos cadernos. Mais tarde a vida jovem noturna, a música, o álcool, Lispector em A Hora da estrela e  “Laços de família”. O teatro me trazendo Nelson Rodrigues em Vestido de Noiva, Anjo Negro, Beijo no Asfalto, A mulher sem pecados (nessa última cheguei a atuar pelos palcos da cidade). Bukowski e Salinger cuspindo sem dó suas palavras na minha cara e Fernando Sabino simplesmente vivendo seu encontro marcado me levaram a iniciar um blog.  Mas naqueles tempos, onde tudo se mostrava inacessível a jovens periféricos piauienses, ler Baião de dois, da Rosa Kapila, e conhecer sua origem e história - do bairro Vermelha, em Teresina, às universidades do Rio de Janeiro – foi o que impulsionou minha primeira publicação. Hoje entendo a representatividade e relevância dessa leitura pra mim. Posteriormente, fui presenteada com a biografia de Anne Sexton pela própria Rosa, que também prefaciou meu primeiro livro. 

O conto ainda desfruta, na sua opinião, do mesmo prestígio de outrora?

FP: A rapidez tecnológica vem afastando as novas gerações desse lugar infindo que é o livro. Nenhum estilo de escrita fica de fora. Mas há que se notar que a atualidade também abre novos espaços, desde a alta de obras literárias em formatos de películas cinematográficas nos streamings à bibliografias citadas por criadores de conteúdos em redes sociais, esses e outros movimentos elevam a procura dos exemplares em livrarias e sites, destaque para ficção científica. O conto tem, sim, suas vantagens nesse contexto e dialoga com a fluidez dos acontecimentos. Mas convenhamos, não há como olhar o passado com a perspectiva romantizada, a leitura nunca foi democrática e acessível no país em que vivemos, e esse quadro só se agrava. 

De que forma literatura, música e artes plásticas marcam sua vida e obra?

FP: Fernando Pessoa já soprava em nossos ouvidos: “A arte é a mestra da vida”! Em mim, tudo parece ser uma única coisa, que vai se emaranhando em afetos e trazendo percepções que serão pedacinhos de eternidade que eu mesma construí. Devo muitos textos a sons que me atravessaram em um dado momento, de leituras e escritos vou parindo ilustrações, amo também a sétima arte, viajo a mil mundos e me sinto criativa. A minha vida é involuntariamente marcada pela arte, em algum momento do dia ela estará presente sem esforço, e os meus olhos e sentidos estarão abertos. Não saímos os mesmos depois de sentir um som, ler um clássico ou imergir no mundo imagético das artes visuais, e essa outra de mim que nasce a cada contato, também doa em aprendizado à minha própria obra. 

Fernanda Paz se desdobra em contações de histórias (Divulgação)

Que estratégias você usa a fim de despertar o gosto pela leitura em seus alunos?

FP: Primeiro de tudo, muito contato com materiais diversos, que eles mesmos possam escolher, ou pela capa, ou pelo título, ou apenas pelas cores, o que os interessa. É um público infantil, então me desdobro em contações de histórias, uso corpo, entonação, movimento, nisso o teatro me ajudou demais. Por vezes, me fantasio ou confecciono materiais em e.v.a e feltro. Também fazemos um trabalho intitulado “sacola da leitura”, no qual emprestamos livros infantis para que as famílias leiam com suas crianças durante o final de semana. Na segunda, debatemos a leitura que fizeram em grupo. Os olhinhos sempre brilham e, quase sempre, eu me emociono muito em pensar o quanto a desigualdade social rouba um universo de possibilidades das nossas crianças. 

O que o leitor vai encontrar ao ler, por exemplo, O buraco e outras histórias e Olhos de vidro?

FP: Encontrará diálogos entre o real e o fantástico, persongens em aparente confusão mental que levam a atitudes desesperadas, aspectos indizíveis no relacionamento humano. Talvez um toque poético. Em O buraco e outras histórias sinto algumas palavras desgastadas pelo tempo, um trato até insensível com alguns temas que precisariam de um cuidado maior na abordagem, mas não vejo prejuízo ao trabalho como um todo. Escuto de leitores que, por vezes, meus contos possuem aspectos distópicos que flertam com ficção científica. Gosto de pensar que os leitores desses dois livros, ou dos que estão porvir, possam acessar novos lugares e perspectivas na mente. Não trabalho com o óbvio, imagino e escrevo novas realidades ou uso metáforas para descrevê-las, mas o faço de uma maneira acessível a qualquer tipo de leitor.

Como o feminismo e o erótico aparecem na sua obra?

FP: O feminismo veio a mim em vivência, antes de leituras. De conselho e exemplo sofrido de mãe, de sentir na pele o quão difícil é ter o trabalho notado em uma sociedade extremamente patriarcal, vivendo numa cidade provinciana como a nossa. Hoje aumentar minhas referências nessa pauta me deixa pensativa sobre o quanto normalizamos o que não é normal, e o quanto suportamos caladas até aqui. Impossível tais vivências não influenciarem diretamente na minha escrita e produção como um todo. Em alguns contos, como “Envelope”, narro em metáforas doloridas a opressão vivenciada por tantas mulheres em um relacionamento abusivo. Uma mulher larga tudo, casa, marido, filhos, emprego para experimentar sua sexualidade em uma aventura juvenil no conto “Outra vida”. Em uma viagem otimista, escrevo em “Energia transitória” sobre uma personagem que transforma homens reais em bonecos eletrônicos de prazer, tornando isso um negócio que vai se expandindo e reiventando a sociedade. Isso fala muito sobre os reflexos da objetificação dos nossos corpos que são tidos como uma vitrine para homens, se usarmos em algo diferente que não seja o prazer masculino, o nosso corpo é “cancelado” pela sociedade, como vemos em protestos contendo nudez. Sou uma apaixonada por corpos, pela nudez. Eu a desenho, admiro, escrevo, consumo e nem sempre ela fala sobre erotismo, não deveria ser conteúdo sensível, a existência é nua, de tanto vestirmos nossas percepções e opiniões vamos alimentando um sociedade mascarada, onde ninguém consegue ser o que é. Em um espelho, ficamos irreconhecíveis a nós mesmos.



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