Cinthia Lages

Notícias Direto de Brasília

Opinião - Extremismo deturpa luta em defesa da Educação

Jornalista analisa discursos e símbolos em dois grupos de whatsapp criados para defender a Educação

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Discurso de ódio, deboche e fakenews distorcem causa justa pelo retorno às aulas presenciais e isso não é nada bom! Palavras de apoio, pedidos de PDF de livros, orientação sobre notas e mutirão para ajudar aprovados no ENEM e isso é bonito de ver! Duas visões, dois caminhos diferentes na busca de solução para o inimigo comum: o coronavírus. Este artigo traz as  minhas impressões após acompanhar dois grupos de whatsapp ao longo das duas últimas semanas. Um deles, originalmente  com 170 membros é formado por pais de alunos da rede privada de Teresina. O segundo, por 250 alunos da rede pública e professores do curso preparatório Pre-ENEM.

O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando” e quando isso acontece “o diferente ou o outro acaba tornando-se insignificante”  escreve o filósofo sul coreano , Byung-Chul Han, em seu livro “Sociedade do Cansaço”, onde analisa o impacto da positividade nas relações com o outro. Pleitear que os filhos voltem a estudar e iniciar um movimento nesse sentido é, muito mais do que aceitável, vindo de pais, que anseiam deixar uma boa educação com o legado. Se essa luta ocorre em meio a uma pandemia,com índices alarmantes de casos e mortes, por si só, não pode ser considerado um ato condenável. E não seria que todas as partes envolvidas no processo educacional estivessem seguras para desempenhar o seu papel. Além de não ser este o ponto, existe um outro fator a ser considerado: o pressuposto de que uma dessas partes, os professores, seriam contrários ao retorno presencial, não por estarem temerosos  pela doença e suas conseqüências no ambiente escolar e fora dele. Mas por, supostamente, não gostarem de trabalhar. A frase, impactante, é uma das mais repetidas no grupo de whatsapp formado pelos pais. Nas discussões, as mães  são as mais atuantes. Dentre elas, são servidoras públicas  federais, empresárias e até oficial da Polícia Militar. Mas também operadores do Direito e professores.  O  grupo ganhou notoriedade após a polêmica “aula no bar”, ação que levou crianças pequenas para “assistir aula” em um Restaurante da capital, com a justificativa de que se o setor estava funcionando, as escolas também poderiam.  A campanha “A escola não tem culpa”, com logomarca desenhadas  nas cores preto e vermelho, vinha a acompanhada de outros artes nas redes sociais afirmando que “lockdown é crime”. No perfil de instagram, além de defesa dessas afirmações, existem postagens sobre “aumento de suicídio infantil durante a pandemia” (informação que é desprovida de estatísticas).  Os responsáveis pelo perfil também contestam os grupos prioritários  - onde indígenas foram incluídos. Uma das seguidoras respondeu à mensagem “ deixando de seguir a página. Fiquei decepcionada com o comentário sobre os indígenas e a falta de consideração aos professores falecidos. Mas saio da página aqui por falta de empatia e solidariedade.Saúde e se cuidem”.

Eu tive acesso a aproximadamente 120 mensagens do grupo. O que existe em comum nos debates virtuais além da “certeza” de que os professores não querem trabalhar presencialmente são algumas idéias que precisam ser melhor compreendidas, já que existe uma relação, que deveria ser de, senão amizade, ao menos respeito entre pais e professores. Sem essa premissa, como imaginar que as crianças são educadas por pessoas adeptas da desídia? Senão vejamos: no dia 10 de março, uma das integrantes postou : “Não vi nada sobre surto nas escolas”. Outra também compartilhou sua idéia sobre os responsáveis pela educação dos filhos: “ morre tanta gente, mas só estão preocupados com professor?  Dez dias depois, em apenas uma semana, 10 professores morreram em consequência  da doença. Uma das mortes  foi comentada pelo grupo, a do Professor Chico Carlos.” Quem garante que ele pegou na escola? E a família que convivia com ele? A falta de empatia com a morte só não é maior do que a forma grosseira com que os professores são tratados por alguns ( há discordâncias, sim! ) . “ Se preparem para a inauguração da Havan, o professor que eu ver lá vou tirar foto”. O primeiro a comentar, respondeu “ Vou só pra filmar com celular carregado”. Há mais mensagens no mesmo tom “eles não tem ( sic) vergonha nenhuma, nunca gostaram de trabalhar e agora tem ( sic) a desculpa perfeita para isso”.

Logo após a série de 4 mortes de professores e a nova suspensão das aulas presenciais, ocorrida a partir do dia 21 de março, através de um acordo entre os Sindicatos de Professores e dos Empresários de Educação, o Sinpro passou a ser alvo “Sindicato só luta pelo não trabalho. Não luta pelos direitos trabalhistas”, afirmou uma das integrantes do grupo que tem representantes da Justiça Trabalhista. Antes, o Sinpro também recebeu muitas críticas e até uma ameaça ao presidente “onde é a casa desse presidente? Depois que a conversa vazou, um dos responsáveis disse que a mensagem publicada em vários sites era verdadeira “mas que foi de cabeça quente”.  Mesmo após o vazamento, as  mensagens seguiram surpreendendo pela falta de sensibilidade.  Uma delas questiona a cobrança considerada “exagerada” em relação às escolas. “Ninguém questiona os protocolos que os garis usam para recolher o NOSSO lixo” ( grifo meu), escreveu. Garis seguem trabalhando na coleta dos resíduos sólidos que, aliás, tiveram produção aumentada durante a pandemia. Eles estão bastante expostos, principalmente, porque a população não aplica a coleta seletiva que prevê descarte diferente de máscaras e outros EPI’s .

A divulgação de fakenews também foi observada. “Já ví que estão inventando uma nova cepa e que a vacina não protege, aquela balela de sempre para enganar os bestas

Mais uma desculpa para travar a economia”, comentou uma das mães, que foi contestada por outra.  Ela, entretanto, estava sozinha na sua visão deturpada da doença que já matou 4268 pessoas no Piauí. As novas cepas ou variantes da doença se configuram hoje numa ameaça global, já que o poder de transmissibilidade delas é maior. Também há espaço para teorias da conspiração: “ninguém me tira da cabeça que é proposital para provocar a quebra mesmo das escolas particulares e depois uniformizar o ensino da forma como convier”. Acreditam, essa mensagem veio de uma mulher jovem e bem sucedida o suficiente para ter filho matriculado em uma excelente escola? Mais uma vez, vale destacar a falta de empatia, inclusive, pelos colegas de profissão. Trinta e cinco policiais militares perderam a batalha para a covid19 no estado ( até o dia 5 de abril de 2021) . Dentre as muitas ações que eles desempenham na linha de frente está a fiscalização das medidas restritivas : reproduzindo um post do Dep. Marco Feliciano condenando governadores que não estariam vacinando a população e alegando que o Exército irá entrar em campo ( o que já ocorre em algumas regiões, como a Amazônia, há muitos anos e é parte da ajuda humanitária das Forças Armadas”.

Além de estabelecer um inimigo imaginário ( professores) e disseminar informações inverídicas, a análise dos símbolos usados na comunicação do grupo também diverge da realidade fora dele. Nos comentários analisados entre 10 de março e 3 de outubro, o emoji que mostra um rosto chorando de tanto rir é um dos mais utilizados. Segundo a Emojipedia, plataforma que reúne dados sobre o uso dos ícones de conversas na Internet, a carinha rindo litros perdeu espaço para  o  rosto chorando escandalosamente. Por motivos óbvios! Mas há também espaço para carinhas com muita raiva – que divide o ranking dos  ícones mais utilizados.

Mas eu também penetrei em outro universo onde emojis  de beijos, mãos dadas,  abraços, símbolos de  corações e gratidão deixam leve e colorida a conversa. Dela fazem parte adolescentes e jovens que se preparam para realizar o sonho de entrar na Universidade, além de professores da rede pública. Palavras de apoio, confraternização, conforto e  esperança respondem as carinhas postadas pelos estudantes. O grupo de whatsapp “salas de aula on line” foi criado por um grupo de professores estaduais  quando as escolas fecharam no ano passado, e eles perceberam que a desistência estava aumentando, principalmente, entre os que se preparavam para o ENEM. A assistência aos alunos ocorria 24 horas com a correção de redações e atividades de outras disciplinas. Aqui não há sequer espaço – e muito menos tempo – para chamar alguém de preguiçoso ou preguiçosa. Mesmo depois do resultado do Enem, o grupo segue ativo, com o pós-Enem que consiste em orientação e assistência,  inclusive, emocional.  A maioria dos estudantes é de baixa renda, de cidades  do interior do Piauí. Nem a dificuldade com os dispositivos – muitos relatam ter estudado através do celular pertencente a alguém da família ou dividindo uma plataforma online com uma colega de preparatório. Outros dependiam de internet gratuita, em praças e prédios públicos, desanimou a turma. Não houve limites para que seguissem estudando. O resultado foi uma perfomance surpreendente na prova que é definitiva para garantir uma vaga em Instituição de Ensino. Notas que variaram de 900 a 980 “inundaram” o grupo no dia da divulgação do resultado. Segundo o MEC, em houve apenas 20 notas 1000, que é a pontuação máxima, em todo o país. Nenhum candidato do Piauí aparece nessa seleta galeria de campeões, o que torna ainda mais significativas as notas obtidas pelos alunos da rede pública.

Eu acompanho o grupo desde o dia 29, data da divulgação das notas da prova de Redação. A relação entre eles e os professores se dá de uma forma totalmente adversa à do grupo anterior. Mesmo entre aqueles que não tiveram resultado positivo não há desrespeito ou revolta, ainda que eles tenham sido privados de aulas presenciais e tenham enfrentado barreiras quase intransponíveis para manter os estudos e fazer as provas do Exame Nacional do Ensino Médio 2020, num ano em que a abstenção chegou a 55,3% dos inscritos. Entre os professores que presentes no grupo, também não percebi má vontade em atender às dúvidas – que são muitas – daqueles que obtiveram notas para uma colocação. “Você vai nos ajudar em relação ao SISU né? Questionou uma das estudantes. “Temos ainda a batalha do SISU. Venceremos juntos” respondeu a professora. Há a orientação sobre como obter os documentos que são exigidos pelas instituições e a promessa de um mutirão de professores e diretores para ajudar a facilitar a emissão de certidões e históricos dentro do prazo exigido pelo Mec.

Os integrantes do  grupo também pedem arquivos de livros e publicações que possam ajudar nos estudos ampliando conhecimentos.”Alguém tem os livros Meu Corpo, Minha Casa e O que o Sol faz com as Flores em PDF”, escreveu uma estudante que logo recebeu o arquivo dos livros da poetisa e escritora indiana Rupi Kaur. Também foram compartilhados artigos, links de youtube, curiosidades sobre obras de arte, questionamentos contemporâneos como  o uso do prenomes neutros  , cadernos de jornais estrangeiros, “El País” e “The Washington Post”, Guias de Profissões. Temas ecléticos  que estimulam leitura, conhecimento e refletem a empatia dos professores para com os alunos e dos integrantes dos grupos para com os colegas. Uma curiosidade: em nenhum comentário que eu acompanhei, houve qualquer menção ao fato de que, sendo os integrantes do grupo, garotos e garotas pobres, com menos oportunidades do que outros estudantes de escolas particulares, terem tido desempenho melhor , em condições tão diferentes. E é bom que se esclareça que as conquistas individuais de jovens oriundos de escolas da zona rural, como ocorreu com o José, de Acauã, não desmerece os que têm boas condições financeiras, puderam escolher  entre as muitas plataformas disponíveis, tiveram acesso aos livros, filmes, documentários que quisessem, não passaram fome, têm o próprio transporte e pais que lhes proporcionam a melhor Educação. Até porque, o inimigo, que, já sabemos, não é o professor, também não é o estudante rico, ou seus pais, ou os donos de escolas.  Não há espaço para o ódio de classes, nem para intolerância ideológica no grupo formado por filhos de trabalhadores rurais, pequenos comerciantes, professores, zeladores e garis. Aqueles que recolhem o NOSSO lixo! Por que , então, ele existe exatamente  entre os que têm ainda mais chances de reconhecer quem realmente precisa ser vencido nessa luta?



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