Viciados são “tratados” com choques e água gelada

Centros comunitários de reabilitação ainda não foram estabelecidos

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Fu Lixin, que estava se sentindo esgotada emocionalmente com o esforço para cuidar de sua mãe doente, precisava de alguma coisa que a ajudasse a recuperar o ânimo. Um amigo lhe ofereceu um "cigarro especial" - contendo metanfetamina -, e Fu imediatamente o acendeu, satisfeita.

No dia seguinte, três policiais bateram à sua porta. "Pediram que eu urinasse em um vidro", ela disse. "Meu amigo havia sido detido, e me dedurou. Era um teste de drogas. Fui apanhada na hora".

Embora tenha alegado que aquela havia sido sua primeira experiência com metanfetaminas, Fu, 41 anos, foi imediatamente enviada a um dos centros de reabilitação compulsória de drogados chineses. A estadia mínima nessas instituições é de dois anos, e a vida dos detidos consiste de uma sucessão inesgotável de abusos físicos e trabalho forçado, sem qualquer tratamento para as drogas, de acordo com antigos prisioneiros e profissionais no tratamento de viciados.

"Foi um inferno do qual ainda estou tentando me recuperar", disse Fu. De acordo com as Nações Unidas, o número de cidadãos chineses detidos nesses centros atinge o meio milhão. As detenções são impostas pela polícia, sem julgamento, juízes ou direito a recurso. Criados em 2008 como parte de um esforço de reforma para enfrentar os crescentes problemas do país com drogas, os centros, segundo advogados e especialistas em drogas, ser tornaram na verdade colônias penais nas quais os detentos se veem forçados a trabalhar em fábricas e fazendas, recebem alimentação insuficiente e não contam com serviços médicos essenciais.

"O governo os chama de centros de desintoxicação, mas todo mundo sabe que uma desintoxicação demora apenas alguns dias, e não dois anos", disse Joseph Amon, epidemiologista da Human Rights Watch, uma organização de defesa dos direitos humanos em Nova York. "O conceito primário é desumano e incorreto".

Na quinta-feira, a Human Rights Watch lançou um relatório sobre o novo sistema chinês de reabilitação de drogados, que substituiu a abordagem anteriormente empregada pelo Partido Comunista: enviar os viciados a campos de trabalho nos quais eles viviam detidos e eram forçados a trabalhar em companhia de ladrões, prostitutas e dissidentes políticos.

O relatório, intitulado "Uma Escuridão Sem Limites", apela ao governo chinês pelo fechamento imediato dos centros de detenção.

Sob a Lei de Combate a Drogas de 2008, os usuários de drogas devem ser enviados a clínicas profissionais de desintoxicação e libertados para viver em centros comunitários de reabilitação por até quatro anos de acompanhamento terapêutico.

Mas os especialistas em drogas dizem que a lei, parte de uma abordagem supostamente "mais humana" de tratamento dos vícios, na verdade simplesmente mudou o nome do sistema existente. E o pior, dizem, é que expandiu os seis meses de detenção compulsória anteriores a dois anos, que as autoridades por sua vez podem estender a até cinco anos.

Os centros comunitários de reabilitação, dizem os especialistas em tratamento de viciados, ainda não foram estabelecidos.

Wang Xiaoguang, vice-diretor da Daytop, uma clínica residencial de tratamento de drogados associada a uma organização norte-americana, na província de Yunnan, disse que os centros de desintoxicação do governo eram pouco mais que empresas exploratórias operadas pela polícia. Os detidos, ele disse, passam seu tempo trabalhando em granjas ou fábricas de sapatos que têm contratos com a polícia local; o tratamento contra drogas, o aconselhamento e o treinamento profissional são quase inexistentes.

"Não acredito que essa seja a situação ideal para pessoas que estão tentando se recuperar de um vício", disse Wang em entrevista por telefone.

Em seu relatório, a Human Rights Watch, que trata principalmente da situação em Yunnan, diz que os abusos praticados em alguns dos 114 centros de detenção da província são ainda mais perturbadores. Detidos portadores de doenças sérias, entre as quais tuberculose e aids, muitas vezes se veem privados de tratamento médico. Muitos deles denunciaram ter sido espancados, e algumas dessas agressões foram fatais.

A Comissão Nacional de Controle de Narcóticos, que administra a política chinesa de combate a drogas, não respondeu a pedidos de comentários, na quinta-feira.

Han Wei, 38 anos, um viciado em heroína que está se recuperando e foi libertado de um centro de detenção em Pequim em outubro, diz que os guardas usavam cassetetes elétricos contra os recalcitrantes. "Pelo menos eles nos forneciam capacetes, para que não feríssemos a cabeça ao sofrer convulsões causadas pelos choques", diz.

As refeições consistiam de pães aquecidos no vapor e ocasionalmente de um cozido de repolho. Os detentos tinham autorização para apenas um banho mensal. E o remédio para os que estavam sofrendo dores de abstinência pela falta de heroína era um balde de água fria jogado no rosto. "Não recebi nenhum medicamento e nenhuma terapia", diz Han.

Apesar das privações, Han, antigo proprietário de uma casa noturna, afirma que seus dois anos de detenção realizaram o trabalho esperado: ele abandonou o vício que mantinha desde 1998. "E jamais voltarei", afirmou.

Zhng Wenjun, que dirige a Estrela-Guia, uma organização que ajuda os viciados em recuperação, afirmou que essa determinação era em geral passageira. Pelo menos 98% dos detidos que são libertados terminam por voltar a usar droga, dentro de alguns anos, disse.

Zhang conhece de perto os perigos das recaídas. Seu vício em heroína o levou a centros de desintoxicação e campos de trabalho por seis vezes, da metade dos anos 90 para cá.

"O que o governo não percebe é que isso é uma doença que precisa ser tratada, não punida", disse Zhang, 42 anos, um homem tatuado que fala em voz grave e rouca.

De certa forma, afirma, o estigma do vício paralisa tanto quanto a busca de drogas. As pessoas detidas por uso de drogas têm seus documentos de identidade carimbados com a palavra "viciado", e isso impossibilita a procura de empregos ou obter serviços públicos. E porque a polícia local é notificada automaticamente caso eles se hospedem em hotéis, viajar envolve testes repentinos de drogas e possível humilhação na presença de colegas.

"Na China, ser viciado em drogas é ser inimigo do governo", disse Zhang.

Mas ainda assim ele e outros profissionais de tratamento reconhecem abertamente os avanços da China nos últimos anos. Agora existem oito clínicas de metadona na capital, Pequim, atendendo a duas mil pessoas, e mais de mil programas de substituição de seringas foram criados em todo o país desde 2004.

Yu Jingtao, cuja organização, o Grupo de Redução de Danos de Pequim, distribui 30 mil seringas novas ao mês, disse que o governo estava avançando lentamente para um modelo de tratamento de drogas comum entre os países desenvolvidos. "Estamos em um período de transição", disse Yu, um viciado em recuperação. "Períodos de transição nunca são bonitos".



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