DE BICICLETA, E COM A CABEÇA ERGUIDA: A transformação cultural das bikes

Buscando o máximo em sustentabilidade, economia e saúde, ciclistas rompem as barreiras das classes sociais em suas bicicletas

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Por Sávia Barreto e Juarez Oliveira

José Paulo Alves, educador físico e fisioterapeuta, levantou cedo na manhã de 23 de agosto, como faz todos os dias. Às 05:30h já estava de pé, tomou seu café-da-manhã, ajeitou suas coisas e partiu para o trabalho. Às 06h ele atendeu o seu primeiro aluno, que ele orienta como personal training. Após a primeira aula, Zé Paulo se desloca novamente para atender outro aluno, às 07:30h. No percurso, o personal training busca, sempre que possível, andar nas ruas com menor movimento, respeitando o sentido da via e as sinalizações do trânsito. Mas naquele dia, ao percorrer o primeiro cruzamento da principal avenida de Teresina, a Avenida Frei Serafim, Zé Paulo sofreu um acidente. Um ônibus, que trafegava na faixa do meio, fez uma manobra para entrar à direita e acertou o ciclista.

Zé Paulo sofreu um acidente de bicicleta, mas não abondonou o transporte no dia-a-dia / Foto: Juarez Oliveira

Situações como essa são cada vez mais comuns nas cidades brasileiras. Na maioria dos casos os ciclistas são tratados com intrusos entre os veículos motorizados e seu espaço nas vias de circulação não é respeitado. A sorte do personal, foi que ele estava utilizando o capacete e as luvas e conseguiu se livrar rapidamente da bicicleta, que recebeu todo o impacto do ônibus.

?A única coisa que eu sofri foram algumas escoriações leves e um trauma no joelho?. Zé Paulo conta que depois do acidente, a sua família e os amigos queriam que ele parasse de andar de bicicleta. ?Todos queriam que eu parasse, mas não dá pra parar, a bicicleta é meu transporte?. Ele afirma que no trânsito, percebe que os ciclistas são seres invisíveis. ?Os carros e principalmente as motos estão cada vez mais afoitos e não respeitam ninguém. Eu sempre ando nas vias corretas e não avanço os sinais, mas mesmo assim aconteceu uma acidente como esse, imagine se eu não tomasse cuidado".

Aristides Oliveira, 26 anos, é historiador e se auto-denomina como ?ciclo-ativista de vez em quando?. Ele conta que a reação das pessoas quando percebem que ele faz uso da bicicleta como meio de transporte é um misto de deboche e preconceito. ?As pessoas veem a bicicleta como algo estranho, como se fosse uma coisa fora do contexto. Eu já passei por situações de chegar num show e as pessoas rirem da minha cara, da cara dos meus amigos, por que a gente estava amarrando a bicicleta num poste enquanto as pessoas estacionavam os seus carros. Você acaba sendo marginalizado pelas próprias instituições que não dão espaço para a bicicleta?, ressalta.

Kim Carlos, 26 anos, é professor de matemática e amigo de Aristides. Ele lembra que começou a andar de bicicleta há três anos. ?Eu costumava andar de ônibus e sempre via as pessoas passando de bicicleta, com aquela liberdade e pensava: "por que eu estava preso ali dentro do ônibus quando eu poderia estar andando de bicicleta?"?. O professor afirma que até mesmo os seus alunos se espantam quando ele diz que vai para todo lugar de bicicleta.

Aristides conta que somente o fato de usar a bicicleta é um posicionamento político. ?Você assume a bicicleta, não apenas como opção, mas como posicionamento político. Não concordo com essa urbanização que está acontecendo. Com a bicicleta propomos uma outra possibilidade. Para mim o ciclismo também é isso. A bicicleta, aos poucos está começando a entrar no debate da política urbanística para ser uma saída, uma alternativa?, argumenta. Aristides explica ainda que está há um ano e oito meses utilizando a bicicleta como seu único meio de transporte.

Kim e Aristides usam a bicicleta diariamente, economizando tempo e dinheiro / Foto: Juarez Oliveira

?Eu gastava cerca de R$ 120 por mês indo e voltando para os meus compromissos e meus destinos e sempre via o meu amigo Kim de bicicleta. No começo pensava mais na questão econômica. Comecei mais passeando, nos fins de semana e vi que não era assim uma coisa tão complicada. Vi que de um destino a outro eu chegava mais rápido, otimizava meu tempo, então comecei a utilizar a bicicleta para ir para todo lugar. Por é um absurdo essa política urbanística, que a gente vive, a bicicleta ficar de fora do processo e geralmente não tem seu espaço?, critica.

SEIS VEZES MAIS BARATA QUE ANDAR DE CARRO, CUSTO DA BICICLETA É DE R$ 0,12 POR KM

Imagine ter um meio de transporte em que você só precisa pagar R$ 0,12 por km percorrido. A economia iria aliviar o bolso de muita gente que gasta uma parcela significativa da renda mensal para se locomover. Agora imagine que esse meio de transporte já existe há muito tempo e, além de econômico, pois não é preciso pagar impostos anuais nem colocar combustível, faz bem à saúde. Com todos esses benefícios, a bicicleta ainda é mais utilizada como brinquedo e esporte do que, efetivamente, como solução aos problemas de um trânsito cada vez mais poluidor e caótico.

Um estudo coordenado pelo aluno de mestrado Marcelo Daniel Coelho, no Coppe, o programa de pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que andar de bicicleta é seis vezes mais barato do que de carro. ?As vantagens são muitas, lembrando sempre que a distância de até 10 km é um limite importante para uma viagem ser comparada aos outros meios. Em todos os casos a bicicleta foi mais rápida comparativamente com os outros meios devido aos congestionamentos e retenções observadas neste percursos?, contou Marcelo.

Ele lembra que a bicicleta, ao contrário dos veículos motorizados, não contribui para a poluição atmosférica, melhora as condições físicas dos ciclistas e é mais flexível do que os modos motorizados. ?Devido a sua menor inércia ocupa menos espaço viário, o que facilita encontrar estacionamento?, destaca o pesquisador. A cidade do Rio de Janeiro, que possui a maior malha cicloviária do país e Porto Alegre, que encontra-se em fase de implantação de seu Plano Diretor Cicloviário, com o objetivo de atingir a meta de mais de 490 km de rede cicloviária, foram escolhidas como cenário para o levantamento.

A bicicleta, ao contrário dos veículos motorizados, não contribui para a poluição atmosférica / Foto: Hélvio Meneses

A pesquisa foi feita com dois tipos de ciclistas, um profissional da mobilidade por bicicleta residente na cidade do Rio de Janeiro e um usuário comum com domicílio em Porto Alegre. Na comparação dos custos entre andar de carro e bicicleta, foram incluídos os preços das bicicletas e dos acessórios obrigatórios, discriminados no Código Brasileiro de Trânsito: espelho retrovisor, campainha e refletores dianteiro, traseiro, nas rodas e nos pedais. Além desses, também, foram incluídos outros considerados necessários para proporcionar maior segurança ao ciclista: capacete, luvas, colete refletores, óculo, paralamas, bagageiro e kit de reparos.

Além do uso da bicicleta custar cerca de seis vezes menos para o seu usuário do que o uso do automóvel e aproximadamente três vezes menos caso a mesma viagem fosse feita por ônibus, nos percursos de viagens diárias de 10 a 15 km, os tempos dos deslocamentos por bicicleta foram menores do que se eles fossem realizados com veículos motorizados. Com relação ao automóvel particular, os tempos gastos seriam cerca de 10 a 15 minutos mais demorados, o que representaria um aumento de 20 a 50% no tempo de viagem. Enquanto por meio dos veículos coletivos, como ônibus e metrô, levariam cerca de mais 15 a 20 minutos, que correspondem respectivamente cerca de 40 a 67% de aumento no tempo de viagem no modo coletivo até alcançar os mesmos destinos.

Além de ajudar o cidadão que não tenha condições de utilizar um veículo como meio de transporte para ter acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho e demais atividades, outras classes sociais estão aderindo a utilização da bicicleta e seus benefícios, cobrando também dos poderes públicos um maior investimento na infraestrutura cicloviária. ?Este mesmo ciclista de outras classes sociais que aderiram ao transporte por bicicleta pode vir a ser aquele motorista atrás do volante no dia seguinte, e qual será a atitude dele ao ver um ciclista na via? Possivelmente terá uma atitude positivamente diferenciada e assim por diante as pessoas olharão para um ciclista de forma diferente?, acredita. Marcelo conta que pretende continuar e melhorar a pesquisa inicial feita, incluindo mais cidades de outras regiões e obtendo mais dados de custos.

Para o pesquisador, uma política pública errada herdada de outras gerações, quando ter um carro era sinônimo de poder e superioridade, ainda resulta no preconceito contra os ciclistas. ?No planejamento de várias grandes cidades brasileiras não houve a preocupação de reservar um espaço para implantação de uma ciclovia, ou planejamento de uma rota cicloviária. Até hoje alguns gestores pensam sempre nos carros e veículos motorizados, não pesam nos ciclistas e pedestres, pois a calçada por muitas vezes é estrangulada para aumentar o número de faixas. Entretanto a mentalidade geral está mudando, um pouco atrasada, mas está mudando sim?, diz Marcelo Coelho.

Além de econômica, bicicleta poupa o tempo nos percursos diários / Foto: Hélvio Meneses

Para se ter um ideia das mudanças em relação à mobilidade sustentável, ele cita a norma de acessibilidade da ABNT, que é de 2004, com algumas definições de rampas e calçadas; o Guia ?PlanMob: Construindo a Cidade Sustentável? e o ?Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades?, que são publicações do Ministérios das Cidades de 2007. ?Ou seja, são publicações recentes que somadas a outros trabalhos e publicações vão provocando mudanças na sociedade. Esta nova visão deve ser mais difundida e compartilhada entre os gestores públicos e a sociedade civil que tem um papel importante em cobrar as ações necessárias?, pontua.

BICICLETA: TRANSPORTE SUSTENTÁVEL PARA TODAS AS CLASSES

Em seu livro, ?A distinção: crítica social do julgamento?, Pierre Bordieu sintetiza as pesquisas que desenvolveu ao longo dos anos de 1970 sobre o processo de diferenciação social. Para Bordieu, os julgamentos de gostos e de preferências não são o reflexo da estrutura social, mas sim um meio de afirmar ou de conformar uma vinculação social, com a função de legitimação das diferenças sociais. Se a transmissão do capital cultural feita na escola e herdada pela família, são determinantes para a posição de alguém em relação ao mundo em que vive, o uso da bicicleta caminha a passos firmes para um reconhecimento de transporte sustentável como gosto legítimo da classe alta, média e popular, sem distinções.

O sociólogo Fabiano Gontijo ressalta que, aparentemente, há dois usos mais comuns da bicicleta. ?Por um lado, aqueles que a utilizam como meio de transporte, geralmente por necessidade, logo, pessoas mais ?pobres?; por outro, aqueles que a utilizam como hobby, por esporte ou para se exercitar, logo, pessoas mais ?ricas??. Para o professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), é preciso incentivar o uso da bicicleta como estilo de vida. ?Esse tipo de ciclista é comum em alguns grandes centros urbanos, em particular no Rio de Janeiro, onde a extensão da ciclovia, inclusive em bairros periféricos, é ampla e onde se valoriza o uso da bicicleta como meio de locomoção, como forma de melhorar da saúde e como maneira de preservar o meio ambiente?, argumenta Gontijo.

O sociólogo Fabiano Gontijo acredita que falta de investimento do poder público também é preconceito / Foto: Júnior Araújo

A melhoria das condições de vida e o aumento salarial generalizado na última década levaram à facilitação da compra de automóveis, o que está gerando um aumento do número de acidentes de trânsito e a extensão dos problemas ligados ao trânsito em geral, como engarrafamentos e a liberação de gases poluentes. Em uma sociedade moderna, que não para de consumir veículos cada vez maiores e que utilizam mais combustíveis fósseis, ter carro é um sinal de status. Fabiano ressalta que o status está ligado a valores culturais e, enquanto a cultura não for modificada, os preconceitos permanecerão. ?Ainda valoriza-se muito o carro do ano, de preferência grande, como forma de marcar status diferenciado?, frisa.

Gontijo recorda uma grande greve dos transportes públicos em Paris, na década de 90, quando morava na França. Ele diz que as pessoas começaram a perceber que se fossem menos egoístas e dividissem seus carros com seus vizinhos que trabalham em locais próximos dos seus, isso solucionaria um pouco do problema do trânsito e, no caso, da falta de transporte público. Por outro lado, a prefeitura começou uma grande campanha de incentivo ao uso de bicicleta para minimizar a dependência das pessoas em relação ao transporte público automotivo.

?Isso acabou com grande parte dos engarrafamentos da cidade. Aqui pertinho, em Bogotá, a abertura de ciclovias e o incentivo ao uso de bicicleta solucionou também grande parte dos problemas de trânsito e, sobretudo, de poluição?, conta.

O músico e ativista ambiental David Byrne, ex-vocalista dos Talking Heads, lançou esse ano o livro ?Diários de bicicleta?, onde narra as suas impressões de várias cidades do mundo por onde passou utilizando a bicicleta como principal meio de transporte. No livro ele aponta que na maioria das cidades que em esteve, mesmo naquelas mais receptivas às bicicletas (cidades mais planas e com climas mais amenos), ele era um dos poucos a utilizar a bicicleta para se locomover. Byrne ressaltou que na maioria das vezes quem também pedalava eram apenas as pessoas muito pobres ou os que tinham perdido tudo e não tinham condições de comprar um carro. A barreira do preconceito, no entanto, está sendo rompida, acredita o sociólogo.

?Viajo muito e posso dizer que tenho visto cada vez - principalmente fora do Brasil - a bicicleta sendo usada por pessoas de classes muito díspares, inclusive como meio de transporte. Durante meus estudos universitários, numa cidade do sul da França, me lembro de alguns professores que usavam bicicleta para irem para a universidade?, pontua.

Fabiano Gontijo acredita que a pouca importância dada pelos poderes públicos a esse tipo de transporte, como a falta de investimento em ciclovias ou a sinalização de trânsito para o ciclista, também caracteriza um tipo de preconceito, uma vez que carros, motos e caminhões têm prioridade nas campanhas e sinalizações de trânsito, em detrimento dos pedestres e ciclistas. ?É preciso mudar os hábitos e, para tanto, deve-se mexer na cultura, fazendo da bicicleta um estilo de vida?, reitera.



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