'Só me arrependo de não ter ficado mais rico', diz ex-miliciano

Solto após cumprir parte da pena de cerca de dez anos, ex-integrante relata como Liga da Justiça dominou parte do Rio de Janeiro com violência e corrupção

'Só me arrependo de não ter ficado mais rico', diz ex-miliciano | Reprodução
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Uma existência voltada inteiramente à principal milícia do Rio de Janeiro não deixou o indivíduo conhecido pelo apelido de Mister M com sentimentos como remorso ou culpa. Sentenciado a 18 anos de prisão por participar da Liga da Justiça, ele relata com naturalidade a ascensão e consolidação do grupo através da violência e corrupção. O único pesar, conforme compartilha com a Folha, é não ter "enriquecido ainda mais".

Batizada em homenagem à famosa equipe de super-heróis da DC Comics, a Liga da Justiça, esse grupo criminoso teve sua origem no início dos anos 2000 em Campo Grande, um dos bairros mais densamente habitados da zona oeste do Rio de Janeiro. Rapidamente, a milícia consolidou sua posição como a maior da cidade.

"Tinha o Batman, o Mão Leve, o Sem Alma. Eles eram justiceiros. Os moradores gostavam deles porque impediam que traficantes ficassem nas ruas, impediam roubos", afirma Mister M. Foi ele quem pediu para ser chamado assim, solicitando que seu nome real fosse ocultado por temer represálias.

O principal e mais conhecido integrante do grupo no início era o ex-PM Ricardo da Cruz Teixeira, chamado de Batman, que foi expulso da corporação em 1992. Em 2008, fugiu pela porta da frente do presídio de Bangu –investigação aponta que foram pagos R$ 2 milhões em propina a agentes penitenciários.

Foragido, publicou vídeos na internet nos quais afirmava ser chefe de milícia, mas negava homicídios. Recapturado, foi condenado em março deste ano a 16 anos de prisão. Mister M integrava a parte logística da milícia de Batman e, por isso, foi condenado a cerca de 10 anos de prisão.

Os alicerces do grupo foram delineados durante uma visita a Rio das Pedras, uma comunidade situada na zona oeste do Rio. Nesse local, policiais e ex-policiais, futuros fundadores da Liga da Justiça, realizaram uma espécie de estágio, explorando as estratégias utilizadas pelos criminosos locais para lucrar com as vans.

Além disso, os justiceiros solicitaram empréstimo de armas aos milicianos de Rio das Pedras, comprometendo-se a uma "partilha nos lucros" em troca.

As investigações apontam que Jerônimo Guimarães, que mais tarde seria eleito vereador no Rio, foi escolhido para liderar esse novo grupo. Jerominho, como era conhecido, sempre negou sua participação na organização criminosa. Ele passou 11 anos na prisão e, em agosto de 2022, foi assassinado a tiros.

"Chegamos nos donos das vans e falamos: 'agora, tudo é nosso'. Uma linha de van transporta de 700 a 900 passageiros por dia. Era um lucro milionário", conta Mister M.

Com o tempo, também comerciantes passaram a ter de pagar taxas para a suposta segurança. Houve resistência. Alguns procuraram a polícia por intermédio do Disque Denúncia, serviço que garante o anonimato. Mas o ex-miliciano diz que o bando ficava sabendo, por meio de infiltrados, a identidade dos delatores.

"De repente, você via morador sumir. Falavam: 'cadê fulano? Ele não era envolvido com nada'. Realmente, não era. Mas a gente tinha um cara que recebia R$ 50 mil por semana no Disque Denúncia. Ele trazia as ligações gravadas, que não dava para rastrear. A gente escutava a voz e reconhecia quem fazia a denúncia. Ele sumia", disse, rindo.

Indagado como era feito o sumiço, ele respondeu que "sumiam, três pontinhos, fica ao seu critério".

Procurado pela reportagem, o Disque Denúncia afirmou que "há 28 anos o serviço está à disposição da população garantindo o anonimato". "O Disque Denúncia mantém a preocupação em atender com qualidade a população fluminense, em vez de dar voz para um 'ex-criminoso', com acusações sem qualquer prova."

O ex-miliciano diz nunca ter matado. Questionado se sente arrependimento, afirma que "queria ter colocado mais a mão na massa e ter ficado mais rico". Hoje, em liberdade, alega não integrar mais o grupo. Não perde, contudo, o hábito miliciano de provocar o medo.

Com receio de ser identificado e morto, ele puxa a mão da jornalista. Finge, então, acender um isqueiro na ponta de uma caneta e, em seguida, a coloca debaixo de uma das unhas da repórter. "Alguém pode te pegar, colocar essa caneta com ponta quente debaixo da sua unha. Você vai dizer meu nome a alguém. Com a mais leve tortura", diz.

"Se te pegarem, vai de boa, porque no porta-malas é ruim", completa. Indagado se já passou por essa experiência, diz que sim, mas que foi um "mal-entendido da firma", como ele chama a milícia.

De fato, torturar jornalistas não é algo estranho para a milícia. Ele diz se lembrar –mas nega ter participado– do caso mais rumoroso, quando uma equipe do jornal O Dia foi capturada na favela do Batan, em 2008. A dupla apurava uma reportagem sobre a milícia local. O fato levou à criação da CPI das Milícias na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio).

Segundo Mister M, a milícia se sustenta por ter infiltrados nas polícias e no Judiciário. Sem mostrar provas, cita o nome de um agente de uma força especial da polícia que, segundo ele, teve os estudos pagos por Wellington Braga, o Ecko. Rindo, mostra uma foto do perfil fechado de uma rede social do agente. "É da firma."

Ecko, líder miliciano, foi morto em uma ação policial em 2021. Baleado dentro de casa, foi socorrido. Algemado, recebeu um outro tiro no coração, dentro da viatura. A polícia afirma que, mesmo ferido, ele tentou pegar a arma de uma policial. "Foi uma covardia, isso sim. Queima de arquivo", opina Mister M.



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