José Augusto (Cabeça) fala sobre os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural

José Augusto (Cabeça) fala sobre os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural

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Introdução

Este artigo tem como objetivo principal analisar o papel dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDRs) na construção e no avanço da democracia no âmbito local e sua contribuição para o fortalecimento de novos sujeitos políticos - os agricultores familiares. Especificamente, pretendo influir sobre os encontros entre agricultores familiares e o Estado e os modos como estes encontros podem contribuir para a criação de uma esfera pública de debate e na direção do avanço da democracia. Além disso, a interação destes Conselhos possibilita compreender o debate político e as relações de poder que se estabelecem nestes espaços compostos por diferenciados atores portadores de interesses específicos e distintos. Neste cenário, têm-se manifestações concretas da heterogeneidade e complexidade da composição destes Conselhos, principalmente no que se refere à agricultura familiar, bem como o embate entre diferentes concepções de desenvolvimento rural e desenho democrático.

Esta reflexão compõe-se de três partes, cada uma abordando questões relevantes para alcançar o objetivo proposto. Na primeira parte, faz-se uma breve reflexão histórica sobre o surgimento dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDRs), sua natureza, composição e atribuições, enfatizando os seus elementos participativos. Na segunda parte, é feita uma análise dos encontros entre os agricultores familiares e o Estado, a partir de um conjunto de estudos voltados à compreensão do funcionamento dos CMDRs. Na terceira parte, são analisados as potencialidades e os limites da relação entre Estado e agricultores familiares para a construção de uma esfera pública e para o avanço da democracia.

1.0 Emergência dos CMDRs e participação dos agricultores familiares

Com a redemocratização da sociedade brasileira, a partir de fins da década de 70, assiste-se a um intenso e complexo processo de revitalização da sociedade civil, de valorização da cidadania e de fortalecimento das instâncias públicas municipais. Tal processo foi incentivado, sobretudo, pela pressão dos movimentos sociais junto ao Estado e desdobrou-se na implementação de políticas públicas descentralizadoras e na criação de instituições, tais como os inúmeros conselhos municipais instituídos por meio de legislação nacional e que abarcam diferentes formas e atores sociais. Os conselhos municipais são inovações institucionais e que se estruturam de modo a incorporar representantes da sociedade civil e do Estado, inclusive aquelas categorias e grupos sociais que antes estavam excluídos do espaço público institucional e do debate com os representantes do Estado. No meio rural, citam-se os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural - CMDRs ? que, impulsionados pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar ? PRONAF, mais especificamente da linha Infra-estrutura, permitiu e potencializou o acesso dos agricultores familiares a discussões e decisões relativas ao desenvolvimento rural do município.

Esta linha de ação tem como objetivo principal apoiar, com recursos financeiros não reembolsáveis, a instalação e/ou a melhoria de infra-estrutura e serviços essenciais, inclusive assistência técnica e extensão rural, nos municípios rurais mais pobres e com grande concentração de agricultores familiares (MDA/PRONAF, 2002).

A estrutura do programa está integrada por instâncias que atuam nos âmbitos municipal, estadual e nacional. Assim, o CMDR aprova o PMDR, relatando à Secretaria Executiva Estadual. Esta, por sua vez, analisa o plano e relata ao Conselho Estadual, que se encarrega de encaminhá-lo à Secretaria Executiva Nacional, que é responsável pela aprovação final dos mesmos. O CMDR é o espaço principal para a discussão de propostas que atendam às demandas dos agricultores familiares e para a elaboração de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento de uma comunidade ou município. Representantes dos agricultores familiares têm papel fundamental na elaboração e gestão das políticas públicas.

2.0 Os Conselhos como espaço da paridade e da luta pelo poder

Sabendo que a institucionalização dos CMDRs ainda é algo novo e poucos são os estudos relacionados ao tema, estudos e pesquisas têm sido feitos buscando demonstrar os primeiros resultados em diferentes partes do país. Há um esforço concentrado de retomar estes estudos e pesquisas com o intuito de pensar o funcionamento dos conselhos e associá-los mais diretamente à problemática sobre a esfera pública e o avanço democrático. Obviamente não se pode esquecer que por si só a institucionalização de conselhos municipais representa um avanço, uma vez que abrem espaços para participação da sociedade, por meio de representantes, em discussões políticas que até então eram ausentes da vida dessas pessoas. Não se abstém desta constatação, apenas chama a atenção para a desigualdade da distribuição de poder no interior dos conselhos, pois agricultores familiares muitas vezes não têm o conhecimento técnico das funções burocráticas, também não lidam a com a máquina administrativa do Estado, ficando, em certa medida, dependentes do poder do representante do Estado.

O poder trata-se de qualquer relação social regulada por uma troca desigual. O mais característico é o fato de a desigualdade material estar entrelaçada com a desigualdade não material, sobretudo com a educação desigual, a desigualdade das capacidades representacionais e ainda a desigualdade de oportunidades e capacidades para organizar interesses e para participar autonomamente em processos de tomadas de decisões significativas. Sobre a questão da paridade existente nos conselhos percebe-se, deste ponto de vista, que há uma ilusão de igualdade. O fato de um Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural possuir 50% de representantes de agricultores familiares não exclui a possibilidade de manipulação por parte do poder público, através do poder do representante governamental. De acordo com diversas pesquisas, na maior parte dos CMDRs o cargo de presidente do conselho é exercido pelo representante do governo municipal. Isso muitas vezes é explicado pelo fato de o secretário da agricultura e do extensionista da EMATER- que também em muitos casos é o presidente do CMDR- terem competência técnica para responder às exigências burocráticas de funcionamento do conselho. Pressupõe-se que os agricultores familiares não têm a competência técnica que os extensionistas e os representantes da prefeitura possuem por já estarem trabalhando no âmbito da burocracia e conhecerem o funcionamento da organização. É importante destacar a formatação técnica dos conselhos municipais pelo PRONAF. Ou seja, há que se ter cuidado ao se pensar os CMDRs porque a própria forma de participação dos agricultores familiares no conselho já veio ?amarrada?. Mas não é apenas o conhecimento técnico, o conhecimento do passo a passo legal das normas burocráticas que produz essa assimetria: os vínculos pessoais mantidos dentro da máquina pública pelo representante envolvido com o Conselho é que garantem a agilidade do processo e o pronto-atendimento dos pedidos. Nesse sentido, é a desigual distribuição dos instrumentos de produção do ?fazer político?, é uma assimétrica disposição dos mecanismos técnicos e pessoais, que sustenta a delegação política aos membros do poder público para agir em nome dos ?interesses? dos representados e mantém essa relação de dependência e vínculos, consolidando a divisão do trabalho na esfera das ações políticas.

Nesta composição dos CMDRs observa-se que a disputa pelo poder se dá em um espaço de representação de interesses e poderes diversos, uma vez que o CMDR é um espaço de interação de diferentes formas de poder: o poder político-administrativo do prefeito, o poder representativo do Sindicato, o poder técnico da EMATER, o poder participativo das lideranças locais da agricultura familiar. Assim, apesar do reconhecimento do governo ao atribuir a representantes de agricultores familiares 50 % de assento nos CMDRs, é oportuno não esquecer que diferenças estruturais influenciam plenamente na construção de interesses coletivos. Uma das diferenças estruturais marcantes é o fato de os pequenos produtores nunca terem participado de um espaço de elaboração de políticas públicas como é o caso dos CMDRs, ao contrário dos grandes produtores que sempre influenciaram as políticas agrícolas. Sendo assim, estes últimos podem ter maior capacidade de influenciar as discussões e decisões no conselho. Os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural devem estar interligados em uma rede extensa, capilarizada de conselhos, voltada à mobilização das forças vivas que compõem o meio rural brasileiro; por isso os Planos Municipais de Desenvolvimento Rural não devem ser concebidos na esfera restrita do município, devendo ter um caráter mais regional. Estas diferenças relacionam importantes análises com apresentação de dados empíricos que impõem uma reflexão permanente sobre o funcionamento dos conselhos e de como enfrentar os desafios da gestão social das políticas públicas.

3.0 A representação dos agricultores familiares e a construção da esfera pública

Na ocasião em que os agricultores familiares são reconhecidos e se fazem reconhecer politicamente e, portanto, devem fazer parte de um conselho municipal, há a necessidade da representação. Esta representação aplicada à categoria agricultura familiar tem uma especificidade que não pode ser analisada do ponto de vista da representação nem do poder público, nem de outras entidades que historicamente se configuram como dominantes, como o caso, por exemplo, do sindicato patronal, que sempre influenciou as políticas voltadas ao meio rural. Os agricultores familiares quase sempre foram vistos como uma categoria subalterna que não tem um projeto político próprio, dependendo de outros atores sociais para defenderem os seus interesses (Martins, 1989). Com base nesta visão, o agricultor familiar seria incapaz de participar de um espaço de discussão de políticas públicas, de lidar com as regras da burocracia estatal e de se constituir como representante. Sabe-se que a participação dos agricultores familiares na definição e gestão das políticas públicas de desenvolvimento rural é elemento fundamental para a democratização das esferas governamentais; entretanto, não é garantia direta de que se tenha como conseqüência a efetiva ampliação do acesso aos serviços públicos, muito menos uma possível transformação social. As possibilidades de incorporar as reivindicações dos agricultores familiares encontram-se diretamente associadas à noção de democratização das instituições e políticas públicas. Isto ocorre pelo próprio fato de que o conceito de democracia que se encontra subjacente aos processos de participação social na gestão pública ou seja, a noção de ?democracia participativa? distancia-se de uma concepção que restringe o sentido da democracia aos mecanismos e procedimentos institucionais do âmbito político-administrativo.

A teoria habermasiana (Harbemas 1984) também salienta esta conexão entre associativismo e democracia. Na medida em que a existência de uma efetiva democracia depende da articulação entre a esfera político-institucional e a esfera societária, através da mediação da esfera pública, na qual as demandas, interesses e problemas sociais conseguem expressar-se e, de alguma forma, orientar a atuação dos agentes e instituições político-administrativas, torna-se imprescindível a existência de atores sociais capazes de organização e atuação autônoma. Ou seja, são as formas de associativismo civil, na medida em que tiverem capacidade e autonomia, que irão garantir que o fluxo de influências se oriente da sociedade para as instituições políticas, garantindo o controle e a abertura destas para os interesses societários, e não ao contrário, com a subordinação da sociedade e seus atores aos interesses e à racionalidade da esfera político-administrativa. Assim, num trabalho em que se tem espaços públicos de debate, como é o caso de conselhos, deve-se estar atento para os diferentes grupos e o poder que cada um têm para colocar pontos de debate na agenda política. No caso dos CMDRs, a força histórica dos grandes produtores rurais para influenciar as políticas públicas ainda tem bastante força no âmbito local, ou seja, eles ainda detém um relativo poder que em certa medida faz com que algumas concepções do que seria o melhor para o desenvolvimento rural do município satisfaça apenas seus interesses. Mesmo que a presença de organizações de agricultores familiares nos Conselhos seja relevante isso não se concretiza numa distribuição eqüitativa de poder.

4.0 Considerações finais

Tendo examinado ao longo deste artigo uma combinação de estudos, reflexões e teorias a respeito dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural e a Agricultura Familiar na construção da esfera pública esta parte final pretendo indicar possíveis desdobramentos para o aprofundamento de aspectos referentes às dificuldades de constituição de atores sociais considerados como interlocutores dotados de representatividade e legitimidade no processo de encaminhamento e tomada de decisão. Uma das principais considerações que pode-ser feita é a de que uma maior ou menor participação dos representantes dos agricultores familiares e o seu poder de barganha não dependem de um único fator, mas de vários, em especial, do grau de organização da categoria e de sua trajetória política. Dependem ainda do apoio governamental e de apoios externos (mediadores, ONGs). Ou seja, a natureza dessa participação, seus limites e potenciais encontram-se, direta ou indiretamente, relacionados a uma configuração social, política, institucional e mesmo cultural, seja local ou nacional e que, em certa medida determina a força ou fragilidade dos agricultores familiares e seus representantes.

Vê-se, por exemplo, que nos municípios onde o poder político está ?de costas? para essa categoria social e os próprios agricultores familiares estão desmobilizados há uma maior dificuldade para pensar, propor e elaborar políticas de desenvolvimento rural. Neste caso, a qualidade da participação dos agricultores familiares nas decisões de políticas específicas é restrita. Muitas vezes também, o poder público apenas legitima algumas ações ou medidas compensatórias, por meio da sua própria percepção da agricultura familiar do município e que muitas vezes não condiz com a real necessidade dos agricultores familiares. A referência a essa disputa com o Estado dá-se, especificamente no caso dos CMDRs, quando há uma reivindicação dos agricultores familiares para também poderem concorrer ao cargo de presidente do CMDR, sendo que na maioria das vezes o regimento interno do Conselho estipula que o cargo será sempre exercido pelo Secretário Municipal de Agricultura. Isso acontece em vários municípios, mostrando que, de início, é o poder público quem centraliza o poder nos conselhos. Algumas entidades também são mais fortes, como é o caso dos representantes da categoria patronal, que historicamente sempre tiveram poder para intervir sobre as decisões referentes ao meio rural. Neste sentido, existe uma dificuldade de construção da esfera pública visto que as relações que perpassam os CMDRs ainda são baseadas no clientelismo, no paternalismo e no burocratismo. Os entraves para a consolidação destes Conselhos estão associados a três questões: primeiro, a dificuldade de publicização das práticas sociais, envolvendo a representação de interesses coletivos da agricultura familiar na cena pública; segundo, o poder ainda fortemente exercido pelo Estado, visto como uma coisa natural pelos agricultores familiares, ou seja, o costume com o Estado intervindo em tudo; e terceiro, a dificuldade de separação entre o público e o privado. A esfera pública se constiuirá somente quando as questões fragmentadas dos agricultores familiares se tornarem questões que transcendam os interesses privados e particulares de cada um. Assim, se conformam como um primeiro espaço da política, um espaço não estatal da política, como interesses qualitativamente diferentes do interesse privado e diferente do interesse estatal.



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